Estado tem que obrigar homens a assumir mais tarefas dentro de casa, diz economista feminista
Para Corina Rodríguez Enríquez, não basta
remunerar atividades domésticas a quem as executa: é preciso ações
afirmativas que permitam às mulheres ocupar as mesmas posições dos
homens
“Queremos que os homens cuidem mais, portanto, necessitamos que eles
trabalhem menos”, explica a também pesquisadora do Consejo Nacional de
Investigaciones Científicas y Tecnológicas e integrante do comitê
executivo do Development Alternatives with Women for a New Era (DAWN).
Corina Rodríguez Enríquez: “Queremos que os homens cuidem mais, portanto, necessitamos que eles trabalhem menos”
Para Corina, não basta remunerar atividades do lar a quem as executa: é preciso buscar ações afirmativas que proporcionem às mulheres a possibilidade de ocupar o mesmo número e tipos de posições historicamente relegadas ao universo masculino. “Não é algo fácil, ainda mais porque a atual forma de organização do cuidado está tão naturalizada que as próprias mulheres não a reconhecem como problema”, observa, ao lembrar que mesmo em países onde a licença parental de dois anos pode ser dividida, a tendência é a mãe assumi-la por mais tempo. “É preciso obrigar os homens a cuidar”, protesta. “Nós, mulheres, não temos mais atributos que os homens para cuidar. Simplesmente temos capacidade de parir e amamentar”.
A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida por telefone:
Opera Mundi: Do que se trata a economia feminista e a economia do cuidado? Corina Rodríguez Enríquez: A economia feminista é uma corrente de pensamento heterodoxa, bastante nova e marginal. A economia do cuidado tem a ver com as interações entre as questões de gênero e as relações econômicas e, nesse sentido, tem contribuído para o debate de políticas publicas, o que é bem útil no contexto da América Latina. Em um certo sentido, o que a economia feminista faz, acunhando o conceito da economia do cuidado, é dar visibilidade ao papel sistêmico que o cuidado tem na dinâmica econômica. Os ortodoxos falam da produção e do mercado de trabalho dando por certo a existência da oferta de mão de obra, sem se perguntar como essa força laboral está disponível. E uma das coisas à qual busca dar visibilidade a economia do cuidado é que para essa força de trabalho estar disponível todos os dias para o capital contratá-la, é preciso um imenso trabalho, não majoritariamente remunerado, que realizam as mulheres. O segundo ponto para o qual atenta é como essa atual organização da força de trabalho explica a situação econômica das mulheres, ou seja: como essa forma de organizar o cotidiano da vida, que se sustenta primeiro nos lares e no trabalho não remunerado das mulheres, faz com que elas tenham menor e pior participação no mercado de trabalho, onde conseguem trabalhar menos que os homens, muitas vezes em tarefas informais, sem registro ou proteção social, e com salários menores.
OM: A desigualdade de gênero nos lares é um reflexo ou um motor da desigualdade dentro das empresas e do mercado em geral? CRE: Creio que o que se passa dentro dos lares é o que se passa no mercado de trabalho e vice-versa, porque as mulheres têm menores salários e menos opções laborais, porque somos mais discriminadas pelo fato de sermos mulher. As relações de gênero são dinâmicas e se transformam com o tempo, então o que diz respeito a nossas vidas é diferente do que foi para nossas mães ou nossas avós. Apesar das transformações nisso, as mudanças com o trabalho de cuidado vem mudando muito lentamente. Os homens parecem dispostos a assumir tarefas na economia do cuidado, como levar filhos ao colégio ou ficar com eles, mas estão menos dispostos a limpar a casa, passar ou cuidar de idosos ou doentes. As mulheres, então, acumulam a jornada habitual de cuidado à jornada laboral, e não podem diminuir as tarefas de cuidado por não terem a quem recorrer. Estão debilitadas pelo marco machista e pela precariedade de serviços públicos de cuidado.
OM: Na América Latina isso ainda é pior, não? CRE: Na América Latina isso é muito mais pronunciado por vários motivos. Em primeiro lugar porque o sexismo e o machismo são traços culturais ainda muito fortes. Além disso, os Estados não assumiram o tema do cuidado como prioritário em suas agendas de política pública. Apenas dois ou três países da região o fizeram, como o Uruguai, cujos partidos nas últimas eleições trouxeram o tema para o debate.
OM: Se não incluirmos a questão de gênero para tratar de desigualdade, como conseguiremos superá-la? Como iniciar esse debate fora da academia? CRE: O que precisamos nos países da região é trazer o tema para a agenda pública, ou seja: produzir argumentos sólidos a favor de políticas públicas nesse campo. Em segundo lugar, é preciso que o movimento de mulheres assuma o tema. Os movimentos de mulheres, na maior parte dos países da região, concentraram-se em temas como violência e direitos sexuais e reprodutivos, mas não abordaram esse tema do cuidado em suas agendas. Então continua sendo um tópico histórico dos debates feministas, que querem transformar as relações de gênero e questionar o status quo. Isso é imprescindível para gerar uma demanda social por políticas de cuidado. Não é algo fácil, ainda mais porque a atual forma de organização do cuidado está tão naturalizada que as próprias mulheres não a reconhecem como problema. Será preciso uma batalha cultural, que requer estratégias perseverantes e criativas, assim como argumentos. O Instituto de Estatísticas de México, por exemplo, estimou que o valor econômico do cuidado em seu país gira em torno de 20% do PIB, que é mais do que o México recebe de exportações de petróleo ou mais do que recebe de remessas de imigrantes no exterior. Na Argentina, por exemplo, 20% do PIB é mais do que gastamos com o sistema previdenciário.
OM: A teoria econômica que vigora e guia as politicas públicas de hoje é androcêntrica, em sua opinião? CRE: A teoria econômica ortodoxa é androcêntrica e continua sendo a base da formulação de políticas públicas. O que a economia feminista denuncia é que as relações econômicas estão atravessadas pelas relações de gênero, têm implicâncias diferentes para homens e mulheres e perpetuam desigualdades de gênero. Há quem defenda que se esse trabalho do cuidado cumpre uma determinada função na economia, não é remunerado e ainda ajuda a perpetuar a desigualdade, então deveria ser pago. Outra posição, como a minha, acredita que a demanda da remuneração pode servir como reconhecimento, mas não transformará a situação das mulheres. E, se aspiramos à uma sociedade mais igualitária, o que demandamos é que se retribua trabalho e tempo – tanto cuidado não remunerado quanto aquele remunerado de mercado. Queremos que os homens cuidem mais, portanto, necessitamos que eles atuem menos no mercado de trabalho. A chave é a redistribuição do trabalho e de tempo de trabalho. Para isso a recompensação monetária não é suficiente, pode ser até contraproducente.
Flickr/CC Homens e mulheres têm os mesmos atributos para cuidar dos filhos, diz economista
OM: Como, então, fazer os homens trabalharem menos tempo no mercado e mais em atividades de cuidado?
CRE: Há diferentes estratégias e é importante pensar elas em seus contextos. Os países europeus conseguiram uma distribuição com uma das estratégias de implementação de licenças paternais e também parentais. Essas licenças são conseguidas com os homens trabalhando menos tempo e dedicando mais tempo ao cuidado. O Uruguai, por exemplo, aprovou no ano passado uma lei de ampliação da licença paternal para um mês e a implementação da licença parental. O que a experiência europeia ensinou é que quando as licenças estão disponíveis para mães e pais, as mães acabam cumprindo-as. Então, é preciso implementar mecanismos que obriguem os pais a fazê-lo também. Por exemplo, em países com licença parental de dois anos, pai e mãe podem dividi-la, mas pelo menos seis meses devem ser do pai, senão a licença se reduz a um ano e meio. Estou convencida de que quando enfrentamos tradições culturais arraigadas é necessário um pouco de coerção para transformá-las. É preciso obrigar os homens a cuidar. É preciso encontrar mecanismos que os obriguem a assumir essas responsabilidades.
OM: Algumas funções são vistas como mais propícias para homens e outras para mulheres? Como descontruir isso?
CRE: Temos que descontruir a divisão sexual de trabalho tal como existe. É preciso uma mudança cultural, mas também políticas públicas com ações afirmativas. O Paraguai, por exemplo, implantou um programa para promover a incorporação das mulheres como motoristas de ônibus no sistema de transporte público. Incentivaram, através de uma política afirmativa, que as empresas de transporte contratassem as mulheres.
OM: A que se deve a naturalização da ideia de que a mulher tem maior capacidade de cuidar do que os homens?
CRE: Temos uma capacidade biológica diferente da dos homens, de parir e amamentar, que é inegável. A partir dessa diferença biológica foi construída uma diferença social em relação aos papéis de cuidado, com a ideia de que se parimos temos mais habilidade para trocar fraldas e preparar a comida. Mas isso se estendeu de tal forma que passou a ser entendido que se temos capacidade de parir temos maior capacidade para limpar o banheiro ou para fazer as compras! Essa é, então, a construção social das relações de gênero: a partir de uma diferença biológica inegável em relação à vida, construir essa diferença social, que não tem nenhum fundamento científico. Nós, mulheres, não temos mais atributos que os homens para cuidar. Simplesmente temos capacidade de parir e amamentar.
FONTE;http://operamundi.uol.com.br/conteudo/entrevistas/41444/estado+tem+que+obrigar+homens+a+assumir+mais+tarefas+dentro+de+casa+diz+economista+feminista.shtml
Marsílea Gombata | São Paulo - 27/08/2015 - 06h00
Corina Rodríguez Enríquez: “Queremos que os homens cuidem mais, portanto, necessitamos que eles trabalhem menos”
Para Corina, não basta remunerar atividades do lar a quem as executa: é preciso buscar ações afirmativas que proporcionem às mulheres a possibilidade de ocupar o mesmo número e tipos de posições historicamente relegadas ao universo masculino. “Não é algo fácil, ainda mais porque a atual forma de organização do cuidado está tão naturalizada que as próprias mulheres não a reconhecem como problema”, observa, ao lembrar que mesmo em países onde a licença parental de dois anos pode ser dividida, a tendência é a mãe assumi-la por mais tempo. “É preciso obrigar os homens a cuidar”, protesta. “Nós, mulheres, não temos mais atributos que os homens para cuidar. Simplesmente temos capacidade de parir e amamentar”.
A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida por telefone:
Opera Mundi: Do que se trata a economia feminista e a economia do cuidado? Corina Rodríguez Enríquez: A economia feminista é uma corrente de pensamento heterodoxa, bastante nova e marginal. A economia do cuidado tem a ver com as interações entre as questões de gênero e as relações econômicas e, nesse sentido, tem contribuído para o debate de políticas publicas, o que é bem útil no contexto da América Latina. Em um certo sentido, o que a economia feminista faz, acunhando o conceito da economia do cuidado, é dar visibilidade ao papel sistêmico que o cuidado tem na dinâmica econômica. Os ortodoxos falam da produção e do mercado de trabalho dando por certo a existência da oferta de mão de obra, sem se perguntar como essa força laboral está disponível. E uma das coisas à qual busca dar visibilidade a economia do cuidado é que para essa força de trabalho estar disponível todos os dias para o capital contratá-la, é preciso um imenso trabalho, não majoritariamente remunerado, que realizam as mulheres. O segundo ponto para o qual atenta é como essa atual organização da força de trabalho explica a situação econômica das mulheres, ou seja: como essa forma de organizar o cotidiano da vida, que se sustenta primeiro nos lares e no trabalho não remunerado das mulheres, faz com que elas tenham menor e pior participação no mercado de trabalho, onde conseguem trabalhar menos que os homens, muitas vezes em tarefas informais, sem registro ou proteção social, e com salários menores.
OM: A desigualdade de gênero nos lares é um reflexo ou um motor da desigualdade dentro das empresas e do mercado em geral? CRE: Creio que o que se passa dentro dos lares é o que se passa no mercado de trabalho e vice-versa, porque as mulheres têm menores salários e menos opções laborais, porque somos mais discriminadas pelo fato de sermos mulher. As relações de gênero são dinâmicas e se transformam com o tempo, então o que diz respeito a nossas vidas é diferente do que foi para nossas mães ou nossas avós. Apesar das transformações nisso, as mudanças com o trabalho de cuidado vem mudando muito lentamente. Os homens parecem dispostos a assumir tarefas na economia do cuidado, como levar filhos ao colégio ou ficar com eles, mas estão menos dispostos a limpar a casa, passar ou cuidar de idosos ou doentes. As mulheres, então, acumulam a jornada habitual de cuidado à jornada laboral, e não podem diminuir as tarefas de cuidado por não terem a quem recorrer. Estão debilitadas pelo marco machista e pela precariedade de serviços públicos de cuidado.
OM: Na América Latina isso ainda é pior, não? CRE: Na América Latina isso é muito mais pronunciado por vários motivos. Em primeiro lugar porque o sexismo e o machismo são traços culturais ainda muito fortes. Além disso, os Estados não assumiram o tema do cuidado como prioritário em suas agendas de política pública. Apenas dois ou três países da região o fizeram, como o Uruguai, cujos partidos nas últimas eleições trouxeram o tema para o debate.
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OM: Se não incluirmos a questão de gênero para tratar de desigualdade, como conseguiremos superá-la? Como iniciar esse debate fora da academia? CRE: O que precisamos nos países da região é trazer o tema para a agenda pública, ou seja: produzir argumentos sólidos a favor de políticas públicas nesse campo. Em segundo lugar, é preciso que o movimento de mulheres assuma o tema. Os movimentos de mulheres, na maior parte dos países da região, concentraram-se em temas como violência e direitos sexuais e reprodutivos, mas não abordaram esse tema do cuidado em suas agendas. Então continua sendo um tópico histórico dos debates feministas, que querem transformar as relações de gênero e questionar o status quo. Isso é imprescindível para gerar uma demanda social por políticas de cuidado. Não é algo fácil, ainda mais porque a atual forma de organização do cuidado está tão naturalizada que as próprias mulheres não a reconhecem como problema. Será preciso uma batalha cultural, que requer estratégias perseverantes e criativas, assim como argumentos. O Instituto de Estatísticas de México, por exemplo, estimou que o valor econômico do cuidado em seu país gira em torno de 20% do PIB, que é mais do que o México recebe de exportações de petróleo ou mais do que recebe de remessas de imigrantes no exterior. Na Argentina, por exemplo, 20% do PIB é mais do que gastamos com o sistema previdenciário.
OM: A teoria econômica que vigora e guia as politicas públicas de hoje é androcêntrica, em sua opinião? CRE: A teoria econômica ortodoxa é androcêntrica e continua sendo a base da formulação de políticas públicas. O que a economia feminista denuncia é que as relações econômicas estão atravessadas pelas relações de gênero, têm implicâncias diferentes para homens e mulheres e perpetuam desigualdades de gênero. Há quem defenda que se esse trabalho do cuidado cumpre uma determinada função na economia, não é remunerado e ainda ajuda a perpetuar a desigualdade, então deveria ser pago. Outra posição, como a minha, acredita que a demanda da remuneração pode servir como reconhecimento, mas não transformará a situação das mulheres. E, se aspiramos à uma sociedade mais igualitária, o que demandamos é que se retribua trabalho e tempo – tanto cuidado não remunerado quanto aquele remunerado de mercado. Queremos que os homens cuidem mais, portanto, necessitamos que eles atuem menos no mercado de trabalho. A chave é a redistribuição do trabalho e de tempo de trabalho. Para isso a recompensação monetária não é suficiente, pode ser até contraproducente.
Flickr/CC Homens e mulheres têm os mesmos atributos para cuidar dos filhos, diz economista
OM: Como, então, fazer os homens trabalharem menos tempo no mercado e mais em atividades de cuidado?
CRE: Há diferentes estratégias e é importante pensar elas em seus contextos. Os países europeus conseguiram uma distribuição com uma das estratégias de implementação de licenças paternais e também parentais. Essas licenças são conseguidas com os homens trabalhando menos tempo e dedicando mais tempo ao cuidado. O Uruguai, por exemplo, aprovou no ano passado uma lei de ampliação da licença paternal para um mês e a implementação da licença parental. O que a experiência europeia ensinou é que quando as licenças estão disponíveis para mães e pais, as mães acabam cumprindo-as. Então, é preciso implementar mecanismos que obriguem os pais a fazê-lo também. Por exemplo, em países com licença parental de dois anos, pai e mãe podem dividi-la, mas pelo menos seis meses devem ser do pai, senão a licença se reduz a um ano e meio. Estou convencida de que quando enfrentamos tradições culturais arraigadas é necessário um pouco de coerção para transformá-las. É preciso obrigar os homens a cuidar. É preciso encontrar mecanismos que os obriguem a assumir essas responsabilidades.
OM: Algumas funções são vistas como mais propícias para homens e outras para mulheres? Como descontruir isso?
CRE: Temos que descontruir a divisão sexual de trabalho tal como existe. É preciso uma mudança cultural, mas também políticas públicas com ações afirmativas. O Paraguai, por exemplo, implantou um programa para promover a incorporação das mulheres como motoristas de ônibus no sistema de transporte público. Incentivaram, através de uma política afirmativa, que as empresas de transporte contratassem as mulheres.
OM: A que se deve a naturalização da ideia de que a mulher tem maior capacidade de cuidar do que os homens?
CRE: Temos uma capacidade biológica diferente da dos homens, de parir e amamentar, que é inegável. A partir dessa diferença biológica foi construída uma diferença social em relação aos papéis de cuidado, com a ideia de que se parimos temos mais habilidade para trocar fraldas e preparar a comida. Mas isso se estendeu de tal forma que passou a ser entendido que se temos capacidade de parir temos maior capacidade para limpar o banheiro ou para fazer as compras! Essa é, então, a construção social das relações de gênero: a partir de uma diferença biológica inegável em relação à vida, construir essa diferença social, que não tem nenhum fundamento científico. Nós, mulheres, não temos mais atributos que os homens para cuidar. Simplesmente temos capacidade de parir e amamentar.
FONTE;http://operamundi.uol.com.br/conteudo/entrevistas/41444/estado+tem+que+obrigar+homens+a+assumir+mais+tarefas+dentro+de+casa+diz+economista+feminista.shtml
Marsílea Gombata | São Paulo - 27/08/2015 - 06h00
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