Através da janela se desdobra a imensa e selvagem Tijuana. Óscar [todos os menores que aparecem nesta reportagem pediram que sua identidade fosse ocultada], 16, magro, com a camiseta dois números maior e um buço preto sob o nariz, faz confusão com as datas e não lembra exatamente quando saiu de sua casa no Estado de Nayarit, no centro do México. Da narrativa surgem 36 horas de ônibus para cobrir os mais de 2 mil quilômetros e "só" um dia e meio caminhando antes de se colocar diante da cerca. A apenas um salto para o outro lado. A apenas uma lâmina metálica de seu destino: os EUA.
30/10/2012
Mas está no lado errado. Fracassou. Passa os dias aborrecido na casa da ACM [Associação Cristã de Moços] para menores migrantes, onde terminou sua última aventura. "Meu primo ficou nervoso, saltamos antes da hora e a polícia nos pegou." Suas palavras soam a cansaço, mas o medo não aparece. Fala com uma tranquilidade espantosa sobre burlar a patrulha de fronteira mais preparada do mundo e se expor a tudo em um caminho em que muita gente perdeu a vida, e por um só motivo: é sua rotina.
Essa foi sua terceira tentativa, e ele já prevê uma quarta. Nem o frio da noite nem o calor do dia, nem a falta de água que o fez beber "de poças d'água no chão" lhe tiram a vontade. "Em dezembro volto e pronto", anuncia, caso alguém tivesse alguma dúvida.
Ángel, 13, só queria se encontrar com sua mãe na Califórnia, mas a polícia americana entrou em seu caminho. Os serviços do Instituto Nacional de Imigração ligam para o centro para que alguém passe para apanhá-lo. Com o capuz cobrindo a cabeça, ele caminha com aparente falta de vontade. "Cuide-se", despede-se uma funcionária. O menino se cala. Já no carro, diz suas primeiras palavras: "Estou cansado, estou acordado há muitas horas, umas 17".
À viagem de 2.300 quilômetros que o separa de sua casa na conflituosa Ciudad Neza (Estado do México), Ángel soma o tedioso intercâmbio de mãos desde que o descobriram saltando a cerca. Uma vez detidos, os menores passam por quatro entidades diferentes, duas nos EUA e duas no México, e são obrigados a responder a centenas de perguntas. Óscar resume em uma frase o périplo: "Lá me trataram bem, como criminoso, mas bem".
Para as estatísticas, Ángel e Óscar são dois menores migrantes não acompanhados. De perto são dois adolescentes confusos. Como eles, 16.648 menores foram deportados dos EUA para o México em 2010, segundo os últimos dados oficiais. Meninos mexicanos ou centro-americanos que atravessam o país sozinhos ou nas mãos de "frangueiros" ou "coiotes" (como são chamadas as pessoas que cobram para atravessar pessoas de forma ilegal). É difícil saber com exatidão quantas crianças chegam por ano aos EUA, mas o coordenador das casas da ACM, Uriel González, calcula que cerca de 33 mil conseguem completar a viagem. Segundo ele, aproximadamente uma em cada três pessoas acaba detida. Também não se sabe quantas desaparecem no trajeto.
O ruído inunda cada uma das esquinas da avenida principal de Tijuana. Bingos, cantinas com touros mecânicos onde americanos entornam cerveja a um dólar e prostitutas que atacam os passantes criam um microcosmo que deve ser o que chamam de cultura fronteiriça. Por suas ruas vagam pessoas para lugar nenhum, e pode-se reconhecer esses adolescentes que esperam para atravessar nas margens de um rio tranquilo que corta a cidade. Para milhões de pessoas, Tijuana não passa de um ponto intermediário, uma estação solitária entre dois destinos. Há algo de fracasso em perpetuar-se aqui.
A cerca dupla se prolonga até entrar no mar. Metal enferrujado do lado mexicano e ferro cinza impoluto na face americana. Refletores, câmeras e arame farpado tentam repelir, desafiadores, qualquer tentativa de entrada. Ao cair da tarde de sexta-feira, vê-se um grupo de policiais americanos percorrendo em pequenos veículos e a pé uma ladeira. Alguém deve ter corrido, talvez seja só um animal. Do outro lado, no México, as pessoas matam o tempo na praia, alheias ao espetáculo.
Na primeira vez em que Óscar pisou nos EUA tinha apenas alguns meses. Sua tia, que tem permissão de residência, o fez passar por um de seus filhos na guarita na fronteira. Colou. Seus pais cruzaram pelo morro e durante anos a família viveu em Los Angeles, até que a polícia deteve o pai dirigindo embriagado. A deportação marcou o início do caminho de ida e volta em que Óscar está mergulhado. Hesita antes de responder por que quer ir para os EUA. "Aqui não se pode passar para lá, mas se eu fosse de lá poderia vir aqui quando quisesse. Algo assim como ir para poder voltar. Só isso."
Há cerca de 30 milhões de mexicanos vivendo nos EUA, mas no ano passado a crise econômica reduziu a zero o fluxo entre os que regressaram e os que chegaram ao país. Nos últimos 40 anos, cerca de 12 milhões de mexicanos cruzaram a fronteira para ficar, a metade de forma ilegal. A emigração deixou milhares de famílias separadas e muitos menores, normalmente animados por seus pais, só querem reunir-se aos seus. "Os pais veem os coiotes como agências de viagem, e não como o que são, predadores em busca de dinheiro", diz González. Atravessar um menor com papéis falsos pela entrada legal pode custar até US$ 4 mil, tentá-lo pelas montanhas ou o deserto, cerca de US$ 800.
O cheiro do coentro para o "ceviche" impregna o refeitório da casa da ACM em um sábado ao meio-dia. Bernabé Tejada e sua mulher preparam a comida. Tejada, 51, com um dente de ouro, logo conta a história gringa que todos parecem ter em Tijuana, onde a vida não se entende sem a fronteira. "Eu queria apenas ver o que se sente. Atravessei e andei sem meta por lá. Tomei um refrigerante e voltei, lá não conhecia ninguém", diz, provocando risos da mulher.
A poucos metros do casal, o outro comensal deste fim de semana olha absorto para seu Facebook. Héctor, da Guatemala, 14 anos, não tirou o boné em todo o fim de semana. Chegou ao México com seus irmãos de 16 e 17 anos, fugindo de seu país, e está há vários meses na casa. Os três pediram asilo no país e quando estavam em tramitação Héctor se levantou uma manhã e seus irmãos tinham desaparecido. "Atravessaram e não me disseram", diz ele, sem tirar a mão do mouse. Agora estão detidos nos EUA, à espera de ser deportados para a Guatemala. Héctor olha para a tela e diz algo muito baixo. Dá um riso forçado e repete: "Eu não sei o que vou fazer".
fonte;g1Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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