Inscrição em papiro do século 2 menciona que Jesus foi casado, segundo pesquisa da Universidade de Harvard divulgada nesta terça-feira (18). O texto em copta (idioma falado no Egito na época do Império Romano, mesmo período em que Jesus teria vivido) traz a frase: "Jesus disse a eles, minha esposa...", afirma o estudo
28/09/2012
É claro, um manuscrito. Até um século atrás, no mercado de antiguidades do Cairo, podiam-se encontrar livros em papiro com os quais poderia-se revolucionar a história das religiões. Foi o que Carl Reinhardt pensou em 1896, quando comprou um escrito em copta do início do século 2º. Ele o depositou no Museu Egípcio em Berlim, que só foi revelado em 1955 pelo egiptólogo Carl Schmidt.
Veio a ser "O Evangelho de Maria" e agitou as investigações sobre o protagonismo das mulheres nas primeiras comunidades cristãs. Em uma religião cujas hierarquias desprezam, e inclusive detestam, a mulher, reabria o velho debate sobre o estado civil de Jesus, o fundador cristão, como salientou Karen King, renomada catedrática da Universidade Harvard, que em 2006 ofereceu mais uma tradução e um estudo rigoroso.
Agora surge outro papiro. No que foi comprado por Reinhardt, faltavam as seis primeiras páginas e mais quatro do centro. Karen King acredita que eram a chave de um fato que se desejou ocultar como se fosse perigoso. Na semana passada revelou o texto no qual se diz que Jesus se casou.
A tradição cristã dominante sempre disse que não se casou, apesar de não haver evidências que apoiem tal afirmação ou a contrária.
"Se nos primeiros textos não há referências ao casamento de Jesus é porque no contexto judaico o normal era que fosse casado. Por que então as reações, mais viscerais que argumentadas, em contrário? As razões têm a ver com o sexo. Porque cai por terra todo o fundamento cristológico do celibato imposto aos sacerdotes; porque perde justificativa a superioridade da vida consagrada a Deus sobre a vida dos cristãos seculares, e porque desmonta a visão negativa que a Igreja tem da sexualidade e a consequente repressão sexual que impõe", afirma o teólogo Juan José Tamayo, autor de três livros sobre a vida e a obra de Jesus de Nazaré.
No Evangelho de Maria, há um diálogo de Jesus com os discípulos depois da ressurreição. Entre eles está Maria de Madala (vulgarmente chamada de Madalena), que antes havia revelado ensinamentos que ela mesma recebeu em uma visão do ressuscitado. Alguns discípulos se aborrecem. Como podia Jesus escolher uma mulher como interlocutor, marginalizando Pedro, por exemplo? Outros criticam em Pedro o tratamento que dá a Madalena: "Se o Salvador a fez digna, quem és tu para rechaçá-la? O Salvador a conhecia profundamente. Por isso a amou mais que a nós. O que deveria nos dar vergonha".
Outro fragmento contém esta citação: "E Jesus lhes disse: minha mulher". À discussão sobre se essa mulher merece fazer parte da comunidade, Jesus responde: "Ela pode ser minha discípula também". Com essa frase, a tese de são Paulo ordenando que as mulheres se calassem nas assembleias iria pelos ares de forma clamorosa.
Há uma legião de padres da Igreja que detestam a mulher. Paulo de Tarso: "É bom para o homem abster-se de mulheres". Agostinho de Hipona: "O marido ama a mulher porque é sua esposa, mas a odeia porque é mulher". Tomás de Aquino: "A mulher é um homem malogrado". João Damasceno: "A mulher é uma burra teimosa, um verme terrível no coração do homem, ela expulsou Adão do paraíso". Tertuliano: "Não é permitido que uma mulher fale na igreja, nem batizar, nem oferecer a eucaristia, nem participar das funções masculinas, e muito menos do sacerdócio".
Apesar de ter havido na história alguns papas casados e com filhos, se impôs a ideia de que, se o celibato era superior e o casamento inferior, embora lícito, o sexo seria em consequência um ato perverso e um pecado lícito só no matrimônio. Foi o que disse logo o bispo Ambrósio de Milão (373-397): "A vida conjugal é incompatível com uma carreira na Igreja. Inclusive, um bom matrimônio é a escravidão".
É a tese do fundador da Opus Dei, o já santo Josemaría Escrivá de Balaguer, na máxima 28 do "Caminho", o livro de cabeceira de seus influentes seguidores: "O casamento é para a classe de tropa, e não para o estado-maior de Cristo".
No Vaticano, centro do império católico, nunca se aceitará que Jesus foi um homem casado. Isso destruiria as bases de seu vasto poder desde que o imperador Constantino consagrou o cristianismo como fé oficial de seu império. Para tanto foi preciso intervir energicamente a favor da facção que afirmava que Jesus era filho de Deus, inclusive ele mesmo Deus e um dos componentes da agora chamada Santíssima Trindade.
A principal consequência da intervenção de Constantino foi, no entanto, a conversão dos cristãos em um poder com vocação de dominar o mundo com um Estado próprio na sede do já decaído Império Romano. Nada disso pôde imaginar seu fundador. Como disse o clássico, Jesus anunciou o reino de Deus, e o que veio foi a Igreja, com poder, influência e luxos sem conta.
O imperador interveio - Concílio de Niceia, ano de 325 - para impor a paz entre adversários teológicos, mas a realidade foi bem outra. Ali se engendraram inúmeras guerras de religião, terríveis perseguições - os até então cristãos perseguidos se transformariam em ferozes perseguidores - e tempos de inquisições e autos de fé. Voltaire calculou em sua época que a religião havia causado um milhão de mortos por século.
Eram a consequência de outra proclamação conciliar, de arrogante ignorância: a que afirmou até 50 anos atrás que "fora dessa Igreja não há salvação (Concílio Ecumênico de Florença, 1442), com estas palavras: "A Santa Igreja Romana crê firmemente, confessa e proclama que ninguém fora da Igreja Católica, seja pagão ou judeu, não crente ou separado da unidade, participa da vida eterna, senão que cai no fogo eterno que foi preparado pelo demônio e seus anjos, a não ser que se incorpore a ela antes da morte".
Quinhentos anos depois, o Vaticano 2º reconheceu a liberdade de consciência e de religião em uma declaração que caiu como uma bomba no nacional-catolicismo espanhol. Além disso, em 1999 o papa João Paulo 2º aceitou em voz alta o que os melhores teólogos vinham afirmando com muito risco de anátema: que o inferno e o céu não existem como lugares, são meros estados de ânimo - o inferno, estado de ausência de Deus; o céu, de companhia com Deus.
Imposta a tese de que Jesus é Deus - e filho de Deus -, como sustentar que tivesse se casado com mulher terrena e inclusive tivesse filhos? Não podia ser. Deus não se casa. A fórmula foi radical: a proclamação de alguns escritos canônicos (quatro Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, o Apocalipse) e uma radical eliminação dos demais escritos, vários deles também conhecidos até então - e hoje - como Evangelhos, foram postos no fogo. Já seria bastante suportar o fato incontestável de que quem hoje passa por ser o primeiro papa - o pobre pescador Pedro - foi casado e teve dois filhos.
"O papiro revelado por Karen King confirma o que teólogas e teólogos afirmamos há tempo", diz Margarita Pintos, presidente da Associação para o Diálogo Inter-religioso. "No século 1º, a normalidade era que homens e mulheres se casassem para ter descendência, ainda mais em famílias judias, que esperavam o Messias libertador. Mas identificar essa mulher com Maria Madalena é uma leitura patriarcal. Não podemos imaginar que uma mulher por si mesma, sem referência a um homem, seja livre, independente e depositária do anúncio da ressurreição. Sempre que aparece um documento que põe Jesus em relação com alguma mulher, quer identificá-la como sua mãe, sua esposa, sua amante, etc. As mulheres que viveram na proximidade de Jesus foram certamente pessoas peculiares, com pensamento próprio, dispostas a pôr em prática uma notícia libertadora para suas vidas submetidas à ordem patriarcal. No discipulado igualitário de Jesus encontraram esse espaço para desenvolver-se em liberdade. Por seu valor pessoal foram depositárias do anúncio da ressurreição, pregaram nas cidades do império e a muitas isso custou a vida", acrescenta a teóloga.
O escritor Jesús Bastante Liébana, que acaba de publicar "Y resucité entre los muertos. Diario íntimo de Jesús el crucificado" [E ressuscitei entre os mortos. Diário íntimo de Jesus, o crucificado], onde se estende na relação afetuosa entre Jesus e Maria Madalena, lembra que nas primeiras comunidades cristãs, "quando o conceito de Igreja ainda era muito discutido, falava-se com naturalidade sobre se Jesus pôde ou não se casar, e não se propunha o celibato".
"Jesus poderia ter-se casado e formado uma família. O modelo de família defendido pelo Evangelho teria mais peso se o próprio Messias tivesse formado uma. Durante anos se acreditou que Jesus teve irmãos e inclusive uma companheira, que bem poderia ter sido Maria Madalena. Foi bastante depois, atendendo a critérios patriarcais, que a Igreja acabou por se institucionalizar, quando se fechou a via de que Jesus poderia ter tido uma família. A mulher era símbolo de pecado, e o celibato acabou se impondo como um modo de superioridade do homem sobre a mulher. Aí Maria, ou a mulher de Jesus se tivesse outro nome, não tinha cabimento. Assim se impôs a castidade como modelo de perfeição, apesar de os eclesiásticos não terem sido precisamente um exemplo de cumprimento."
O teólogo Tamayo usa a ideia de são Josemaría ("Se Jesus tivesse casado, passaria a ser tropa") para lembrar que cada vez que os pesquisadores, sobretudo as pesquisadoras feministas, defendem a possibilidade de que Jesus fosse casado, a hierarquia católica dá um grito ao céu. "Fazem-no como se se tratasse de uma verdade de fé, quando não pertence ao núcleo do cristianismo e é irrelevante nos evangelhos, que destacam as excelentes relações de Jesus com as mulheres e delas com Jesus."
"A de Deus é Cristo"
As discussões sobre se Jesus de Nazaré era filho de Deus e não um novo e revoltado Messias, e a de agora sobre se casou com mulher, foram um elemento de desespero e ferocidade para a hierarquia cristã desde os tempos em que Paulo de Tarso, um autêntico secretário de organização dessa Igreja, confirmou o mesmíssimo apóstolo Pedro no Concílio de Jerusalém, em torno do ano 46, 16 depois da crucificação do fundador. A sabedoria popular, a mais afetada por tantos detalhes belicosos, cunhou a expressão "E se armou a de Deus é Cristo!" para representar as consequências em guerras e inquisições criminosas. Refere-se ao Concílio de Niceia, onde se decidiu por força que Jesus era filho de Deus (ou seja, Deus).
No mercado religioso, não há uma figura mais imponente que a do fundador do cristianismo, o judeu chamado Yeshua. Na etimologia mais popular, o nome quer dizer "Jeová salva". O nome foi dado por seu pai no dia de sua circuncisão, e era tão corrente na época que era preciso acrescentar algo para identificar a pessoa. Assim em seu povoado, as pessoas chamavam Yeshua de Yeshua bar Yosef, Jesus filho de José, e fora de sua terra, a Galileia dos anos 30, Yeshua ha-notsri, Jesus, o de Nazaré. Hoje, 2012 anos depois, não precisa de sobrenome. Todo mundo o conhece como Jesus, também chamado Jesus Cristo pelos mais de um bilhão de fiéis que o seguem (a religião mais numerosa depois do islamismo).
O prodígio mais assombroso é que, apesar de ter vivido apenas 30 anos, da maior parte dos quais não se tem qualquer notícia (não faltam os que inclusive duvidam de sua existência real), uma boa parte da humanidade conta os dias, os anos e os séculos a partir da data do nascimento de Jesus, embora desconhecida com exatidão.
Se, ao escrever a vida de Jesus, fosse preciso limitar-se às coisas provadas sem discussão, bastariam algumas linhas. Ele existiu (como atestam historiadores romanos como o grande Tácito, embora lhe dedique apenas 20 palavras). Era galileu, de Nazaré. Não escreveu uma linha, se é que sabia ler e escrever. Foi um pregador de sucesso que percorreu sua região depois dos 30 anos fazendo discursos sugestivos (o Sermão da Montanha) ou explosivos. Viajava, muitas vezes em lombo de burro, rodeado no início por uns poucos fiéis pobres e analfabetos, e mais tarde por massas às quais admirou com fatos portentosos conhecidos como milagres. Chamou a atenção por seu tratamento refinado com as mulheres, que o adoraram e às quais defendeu além do tolerado naquele tempo (é muito provável que alguma dessas mulheres financiasse sua campanha com comida e alojamento para toda a comitiva).
Em raras ocasiões, entrou na cidade de Jerusalém, que lhe desagradava. Excitou com seus discursos e atitudes radicais o ódio dos judeus ortodoxos e da gente rica. Finalmente, o poder romano, que ostentava Pôncio Pilatos como procurador-geral da Judeia, concordou de má vontade em condená-lo à morte. Foi crucificado nos arredores de Jerusalém. Pouco depois se acreditou que tivesse ressuscitado, um rumor que mais tarde recolheu o historiador Flávio Josefo.
Entre 60 e 120 anos depois da morte de Jesus na cruz, pessoas que o conheceram de longe ou de ouvido escreveram a história de seus feitos e palavras, que haviam ficado gravados profundamente entre as pessoas. Especialmente relevantes são as epístolas de São Paulo, mas também alguns dos Evangelhos, o Apocalipse e outros textos (até 27 livros), incluindo os que depois ficaram conhecidos como o Novo Testamento cristão.
Segundo os entendidos, há 10 mil biografias publicadas sobre o personagem, e não há canto da Terra que não tenha ouvido falar, por bem ou por mal, da Igreja que nasceu depois de sua morte com o nome de cristianismo.
fonte;uolTradutor: Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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É claro, um manuscrito. Até um século atrás, no mercado de antiguidades do Cairo, podiam-se encontrar livros em papiro com os quais poderia-se revolucionar a história das religiões. Foi o que Carl Reinhardt pensou em 1896, quando comprou um escrito em copta do início do século 2º. Ele o depositou no Museu Egípcio em Berlim, que só foi revelado em 1955 pelo egiptólogo Carl Schmidt.
Veio a ser "O Evangelho de Maria" e agitou as investigações sobre o protagonismo das mulheres nas primeiras comunidades cristãs. Em uma religião cujas hierarquias desprezam, e inclusive detestam, a mulher, reabria o velho debate sobre o estado civil de Jesus, o fundador cristão, como salientou Karen King, renomada catedrática da Universidade Harvard, que em 2006 ofereceu mais uma tradução e um estudo rigoroso.
Agora surge outro papiro. No que foi comprado por Reinhardt, faltavam as seis primeiras páginas e mais quatro do centro. Karen King acredita que eram a chave de um fato que se desejou ocultar como se fosse perigoso. Na semana passada revelou o texto no qual se diz que Jesus se casou.
A tradição cristã dominante sempre disse que não se casou, apesar de não haver evidências que apoiem tal afirmação ou a contrária.
"Se nos primeiros textos não há referências ao casamento de Jesus é porque no contexto judaico o normal era que fosse casado. Por que então as reações, mais viscerais que argumentadas, em contrário? As razões têm a ver com o sexo. Porque cai por terra todo o fundamento cristológico do celibato imposto aos sacerdotes; porque perde justificativa a superioridade da vida consagrada a Deus sobre a vida dos cristãos seculares, e porque desmonta a visão negativa que a Igreja tem da sexualidade e a consequente repressão sexual que impõe", afirma o teólogo Juan José Tamayo, autor de três livros sobre a vida e a obra de Jesus de Nazaré.
No Evangelho de Maria, há um diálogo de Jesus com os discípulos depois da ressurreição. Entre eles está Maria de Madala (vulgarmente chamada de Madalena), que antes havia revelado ensinamentos que ela mesma recebeu em uma visão do ressuscitado. Alguns discípulos se aborrecem. Como podia Jesus escolher uma mulher como interlocutor, marginalizando Pedro, por exemplo? Outros criticam em Pedro o tratamento que dá a Madalena: "Se o Salvador a fez digna, quem és tu para rechaçá-la? O Salvador a conhecia profundamente. Por isso a amou mais que a nós. O que deveria nos dar vergonha".
Outro fragmento contém esta citação: "E Jesus lhes disse: minha mulher". À discussão sobre se essa mulher merece fazer parte da comunidade, Jesus responde: "Ela pode ser minha discípula também". Com essa frase, a tese de são Paulo ordenando que as mulheres se calassem nas assembleias iria pelos ares de forma clamorosa.
Há uma legião de padres da Igreja que detestam a mulher. Paulo de Tarso: "É bom para o homem abster-se de mulheres". Agostinho de Hipona: "O marido ama a mulher porque é sua esposa, mas a odeia porque é mulher". Tomás de Aquino: "A mulher é um homem malogrado". João Damasceno: "A mulher é uma burra teimosa, um verme terrível no coração do homem, ela expulsou Adão do paraíso". Tertuliano: "Não é permitido que uma mulher fale na igreja, nem batizar, nem oferecer a eucaristia, nem participar das funções masculinas, e muito menos do sacerdócio".
Apesar de ter havido na história alguns papas casados e com filhos, se impôs a ideia de que, se o celibato era superior e o casamento inferior, embora lícito, o sexo seria em consequência um ato perverso e um pecado lícito só no matrimônio. Foi o que disse logo o bispo Ambrósio de Milão (373-397): "A vida conjugal é incompatível com uma carreira na Igreja. Inclusive, um bom matrimônio é a escravidão".
É a tese do fundador da Opus Dei, o já santo Josemaría Escrivá de Balaguer, na máxima 28 do "Caminho", o livro de cabeceira de seus influentes seguidores: "O casamento é para a classe de tropa, e não para o estado-maior de Cristo".
No Vaticano, centro do império católico, nunca se aceitará que Jesus foi um homem casado. Isso destruiria as bases de seu vasto poder desde que o imperador Constantino consagrou o cristianismo como fé oficial de seu império. Para tanto foi preciso intervir energicamente a favor da facção que afirmava que Jesus era filho de Deus, inclusive ele mesmo Deus e um dos componentes da agora chamada Santíssima Trindade.
A principal consequência da intervenção de Constantino foi, no entanto, a conversão dos cristãos em um poder com vocação de dominar o mundo com um Estado próprio na sede do já decaído Império Romano. Nada disso pôde imaginar seu fundador. Como disse o clássico, Jesus anunciou o reino de Deus, e o que veio foi a Igreja, com poder, influência e luxos sem conta.
O imperador interveio - Concílio de Niceia, ano de 325 - para impor a paz entre adversários teológicos, mas a realidade foi bem outra. Ali se engendraram inúmeras guerras de religião, terríveis perseguições - os até então cristãos perseguidos se transformariam em ferozes perseguidores - e tempos de inquisições e autos de fé. Voltaire calculou em sua época que a religião havia causado um milhão de mortos por século.
Eram a consequência de outra proclamação conciliar, de arrogante ignorância: a que afirmou até 50 anos atrás que "fora dessa Igreja não há salvação (Concílio Ecumênico de Florença, 1442), com estas palavras: "A Santa Igreja Romana crê firmemente, confessa e proclama que ninguém fora da Igreja Católica, seja pagão ou judeu, não crente ou separado da unidade, participa da vida eterna, senão que cai no fogo eterno que foi preparado pelo demônio e seus anjos, a não ser que se incorpore a ela antes da morte".
Quinhentos anos depois, o Vaticano 2º reconheceu a liberdade de consciência e de religião em uma declaração que caiu como uma bomba no nacional-catolicismo espanhol. Além disso, em 1999 o papa João Paulo 2º aceitou em voz alta o que os melhores teólogos vinham afirmando com muito risco de anátema: que o inferno e o céu não existem como lugares, são meros estados de ânimo - o inferno, estado de ausência de Deus; o céu, de companhia com Deus.
Imposta a tese de que Jesus é Deus - e filho de Deus -, como sustentar que tivesse se casado com mulher terrena e inclusive tivesse filhos? Não podia ser. Deus não se casa. A fórmula foi radical: a proclamação de alguns escritos canônicos (quatro Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, o Apocalipse) e uma radical eliminação dos demais escritos, vários deles também conhecidos até então - e hoje - como Evangelhos, foram postos no fogo. Já seria bastante suportar o fato incontestável de que quem hoje passa por ser o primeiro papa - o pobre pescador Pedro - foi casado e teve dois filhos.
"O papiro revelado por Karen King confirma o que teólogas e teólogos afirmamos há tempo", diz Margarita Pintos, presidente da Associação para o Diálogo Inter-religioso. "No século 1º, a normalidade era que homens e mulheres se casassem para ter descendência, ainda mais em famílias judias, que esperavam o Messias libertador. Mas identificar essa mulher com Maria Madalena é uma leitura patriarcal. Não podemos imaginar que uma mulher por si mesma, sem referência a um homem, seja livre, independente e depositária do anúncio da ressurreição. Sempre que aparece um documento que põe Jesus em relação com alguma mulher, quer identificá-la como sua mãe, sua esposa, sua amante, etc. As mulheres que viveram na proximidade de Jesus foram certamente pessoas peculiares, com pensamento próprio, dispostas a pôr em prática uma notícia libertadora para suas vidas submetidas à ordem patriarcal. No discipulado igualitário de Jesus encontraram esse espaço para desenvolver-se em liberdade. Por seu valor pessoal foram depositárias do anúncio da ressurreição, pregaram nas cidades do império e a muitas isso custou a vida", acrescenta a teóloga.
O escritor Jesús Bastante Liébana, que acaba de publicar "Y resucité entre los muertos. Diario íntimo de Jesús el crucificado" [E ressuscitei entre os mortos. Diário íntimo de Jesus, o crucificado], onde se estende na relação afetuosa entre Jesus e Maria Madalena, lembra que nas primeiras comunidades cristãs, "quando o conceito de Igreja ainda era muito discutido, falava-se com naturalidade sobre se Jesus pôde ou não se casar, e não se propunha o celibato".
"Jesus poderia ter-se casado e formado uma família. O modelo de família defendido pelo Evangelho teria mais peso se o próprio Messias tivesse formado uma. Durante anos se acreditou que Jesus teve irmãos e inclusive uma companheira, que bem poderia ter sido Maria Madalena. Foi bastante depois, atendendo a critérios patriarcais, que a Igreja acabou por se institucionalizar, quando se fechou a via de que Jesus poderia ter tido uma família. A mulher era símbolo de pecado, e o celibato acabou se impondo como um modo de superioridade do homem sobre a mulher. Aí Maria, ou a mulher de Jesus se tivesse outro nome, não tinha cabimento. Assim se impôs a castidade como modelo de perfeição, apesar de os eclesiásticos não terem sido precisamente um exemplo de cumprimento."
O teólogo Tamayo usa a ideia de são Josemaría ("Se Jesus tivesse casado, passaria a ser tropa") para lembrar que cada vez que os pesquisadores, sobretudo as pesquisadoras feministas, defendem a possibilidade de que Jesus fosse casado, a hierarquia católica dá um grito ao céu. "Fazem-no como se se tratasse de uma verdade de fé, quando não pertence ao núcleo do cristianismo e é irrelevante nos evangelhos, que destacam as excelentes relações de Jesus com as mulheres e delas com Jesus."
"A de Deus é Cristo"
As discussões sobre se Jesus de Nazaré era filho de Deus e não um novo e revoltado Messias, e a de agora sobre se casou com mulher, foram um elemento de desespero e ferocidade para a hierarquia cristã desde os tempos em que Paulo de Tarso, um autêntico secretário de organização dessa Igreja, confirmou o mesmíssimo apóstolo Pedro no Concílio de Jerusalém, em torno do ano 46, 16 depois da crucificação do fundador. A sabedoria popular, a mais afetada por tantos detalhes belicosos, cunhou a expressão "E se armou a de Deus é Cristo!" para representar as consequências em guerras e inquisições criminosas. Refere-se ao Concílio de Niceia, onde se decidiu por força que Jesus era filho de Deus (ou seja, Deus).
No mercado religioso, não há uma figura mais imponente que a do fundador do cristianismo, o judeu chamado Yeshua. Na etimologia mais popular, o nome quer dizer "Jeová salva". O nome foi dado por seu pai no dia de sua circuncisão, e era tão corrente na época que era preciso acrescentar algo para identificar a pessoa. Assim em seu povoado, as pessoas chamavam Yeshua de Yeshua bar Yosef, Jesus filho de José, e fora de sua terra, a Galileia dos anos 30, Yeshua ha-notsri, Jesus, o de Nazaré. Hoje, 2012 anos depois, não precisa de sobrenome. Todo mundo o conhece como Jesus, também chamado Jesus Cristo pelos mais de um bilhão de fiéis que o seguem (a religião mais numerosa depois do islamismo).
O prodígio mais assombroso é que, apesar de ter vivido apenas 30 anos, da maior parte dos quais não se tem qualquer notícia (não faltam os que inclusive duvidam de sua existência real), uma boa parte da humanidade conta os dias, os anos e os séculos a partir da data do nascimento de Jesus, embora desconhecida com exatidão.
Se, ao escrever a vida de Jesus, fosse preciso limitar-se às coisas provadas sem discussão, bastariam algumas linhas. Ele existiu (como atestam historiadores romanos como o grande Tácito, embora lhe dedique apenas 20 palavras). Era galileu, de Nazaré. Não escreveu uma linha, se é que sabia ler e escrever. Foi um pregador de sucesso que percorreu sua região depois dos 30 anos fazendo discursos sugestivos (o Sermão da Montanha) ou explosivos. Viajava, muitas vezes em lombo de burro, rodeado no início por uns poucos fiéis pobres e analfabetos, e mais tarde por massas às quais admirou com fatos portentosos conhecidos como milagres. Chamou a atenção por seu tratamento refinado com as mulheres, que o adoraram e às quais defendeu além do tolerado naquele tempo (é muito provável que alguma dessas mulheres financiasse sua campanha com comida e alojamento para toda a comitiva).
Em raras ocasiões, entrou na cidade de Jerusalém, que lhe desagradava. Excitou com seus discursos e atitudes radicais o ódio dos judeus ortodoxos e da gente rica. Finalmente, o poder romano, que ostentava Pôncio Pilatos como procurador-geral da Judeia, concordou de má vontade em condená-lo à morte. Foi crucificado nos arredores de Jerusalém. Pouco depois se acreditou que tivesse ressuscitado, um rumor que mais tarde recolheu o historiador Flávio Josefo.
Entre 60 e 120 anos depois da morte de Jesus na cruz, pessoas que o conheceram de longe ou de ouvido escreveram a história de seus feitos e palavras, que haviam ficado gravados profundamente entre as pessoas. Especialmente relevantes são as epístolas de São Paulo, mas também alguns dos Evangelhos, o Apocalipse e outros textos (até 27 livros), incluindo os que depois ficaram conhecidos como o Novo Testamento cristão.
Segundo os entendidos, há 10 mil biografias publicadas sobre o personagem, e não há canto da Terra que não tenha ouvido falar, por bem ou por mal, da Igreja que nasceu depois de sua morte com o nome de cristianismo.
fonte;uolTradutor: Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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