Fordlândia foi erguida no fim dos anos 1920 pelo magnata norte-americano, interessado nas seringueiras da floresta amazônica, e não vingou também por desprezo à cultura e à realidade locais, diz superintendente do Iphan
Vista aérea de Fordlândia em 1933
Em 2015 completam-se sete décadas da ruína de um pedaço de império no meio da floresta amazônica. Era uma área extensa, de aproximadamente 15 mil quilômetros quadrados no sudoeste do Pará, na região de Santarém, a 800 quilômetros de Belém. Foi onde se construiu a Fordlândia, referência ao empresário norte-americano Henry Ford, que planejava estabelecer ali sua base de fornecimento de borracha. A aventura começou em 1927 e terminou em 1945, sem sucesso. A área hoje está em ruínas. No início deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) solicitou rapidez ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan) no processo de tombamento, mas ambos concordam que isso não será suficiente para recuperar e preservar o local.
Na primeira década do século passado, Henry Ford causou sensação com seu modelo T, pioneiro na fabricação em série. O modelo de produção inovador para a época foi batizado de fordismo. Surgia a linha de montagem. Para os pneus dos automóveis, ele precisava de borracha – e aí surge o projeto da Fordlândia.
O ciclo da borracha no Brasil já estava superado. No início do século 20, quem produzia eram colônias inglesas do Sudeste Asiático. O empresário viu na Amazônia oportunidade de investimento e de fornecimento contínuo e mais barato para seus produtos, fugindo do monopólio britânico. Adquiriu o terreno e, em pouco tempo, criou não apenas uma fábrica, mas uma típica cidade dos Estados Unidos em plena Amazônia, no fim dos anos 1920. Uma little town (cidadezinha) à beira do Rio Tapajós, que chegou a ter mais de 3 mil trabalhadores.
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A produção da borracha, no entanto, nunca se firmou. As pragas atacaram as seringueiras e as plantações ainda foram transferidas – outra cidade foi erguida, em Belterra, que faz parte do processo de tombamento em análise pelo Iphan. Mas a indústria também já havia descoberto a borracha sintética. O projeto brasileiro perdia sentido.
A empresa teve ainda problemas com seus funcionários brasileiros, ao tentar impor uma cultura norte-americana que não se limitava ao modelo de produção e incluía novos hábitos de comportamento e alimentares. Em 1930, por exemplo, houve uma rebelião de trabalhadores, que se batizou de Revolta das Panelas, descrita em detalhes pelo historiador norte-americano Greg Grandin, no livro “Fordlândia – Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva”, lançado no Brasil cinco anos atrás.
[Escola da Vila Americana em 1933. Imagem: Benson Ford Research Center]
Segundo a superintendente do Iphan no Pará, Maria Dorotéa de Lima, o processo de tombamento encontra-se “em vias de finalização”, com algumas pendências. Mas os problemas são muitos, acrescenta. “Na prática, quem responde pela gestão local é a prefeitura de Aveiro, pois Fordlândia é um distrito municipal. Porém, trata-se de área da União, o que dificulta a atuação do município no que se refere à fiscalização”, diz Dorotéa, que conta ter experimentado “sensações contraditórias de fascínio e desolação” ao visitar o local. “O desafio está em superar o isolamento e encontrar soluções que associem preservação, sustentabilidade e gestão.”
“Só o tombamento não vai resolver, se não houver outros canais de proteção”, afirma a procuradora Janaína Andrade, do MPF paraense, que vê necessidade de políticas públicas para cuidar efetivamente da área. “A situação é difícil. Com o passar do tempo, as intempéries vêm, e são perdas que não serão recompostas. E não é só esse patrimônio. Assim como na Fordlândia, infelizmente o patrimônio cultural não tem valor. O próprio Iphan não tem estrutura”, lamenta Janaína.
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Wikimedia Commons
Galpão de antiga fábrica de borracha em Fordlândia, hoje em ruínas
Galpão de antiga fábrica de borracha em Fordlândia, hoje em ruínas
No começo de junho, a procuradora esteve em contato com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que atua junto com o Iphan no caso. Foi feito um pedido de seis meses para conclusão do inventário. Apesar do prazo elevado, o Ministério Público tende a aceitar, até por uma questão prática: uma possível ação civil pública não teria efeito nenhum, porque não haveria como cumpri-la.
Para Janaína, é preciso tentar despertar a consciência da população. “A sociedade não valoriza o patrimônio que tem lá”, afirma. Uma ideia em estudo, que está sendo discutida com professores da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), é levar um curso de extensão (de Arqueologia) de Santarém para Aveiro, cidade onde fica a Fordlândia, com população estimada em 16 mil pessoas, segundo o IBGE.
Mato e ruínas
A Fordlândia deixou de existir, definitivamente, em 1945. O governo brasileiro indenizou a empresa e ficou com a infraestrutura, que aos poucos se perdeu. O local chegou a receber instalações federais e fazendas, com casas habitadas por servidores do Ministério da Agricultura. Mas a área foi abandonada aos poucos e os prédios se deterioraram ou foram alvo de vandalismo. Ainda há moradores na região. Alguns ocuparam casas remanescentes da chamada Vila Americana.
[Escritório utilizado pelos dirigentes de Fordlândia, hoje abandonado. Imagem: Wikimedia Commons]
Recentemente, o repórter Daniel Camargos, do jornal Estado de Minas, visitou o local. Sua descrição a respeito do hospital que funcionava ali ajuda a dar uma ideia do que aconteceu com o passar do tempo: “O projeto do hospital foi elaborado pelo arquiteto Albert Khan, o mesmo que projetou as fábricas da Ford em Highland e River Rouge, nos Estados Unidos. A capacidade era de 100 leitos e foi um dos mais modernos do país, sendo o primeiro a realizar um transplante de pele. Hoje, é só mato e ruínas. No local abandonado, somente o zumbido de mosquito interrompe o silêncio”.
Dorotéa considera que a experiência pioneira, no sentido de implementação de um grande projeto internacional na Amazônia, não deve ser desprezada, mas faz ressalvas. “Os muitos estudos e trabalhos a respeito revelam que o desprezo do componente cultural e da realidade local muito contribuiu para os desacertos”, analisa a superintendente do Iphan. “Muitos projetos vieram depois e, apesar de outro entendimento da região e do componente local, pode-se dizer que continuamos a ser meros fornecedores de matéria-prima, inclusive no caso da energia. Muitas vezes o que fica na região é apenas o lado perverso desses investimentos: desmatamento, poluição, aumento da população nas periferias dos projetos em áreas de ocupação irregular, inchando as cidades que, em geral, não têm as condições devidas para atendê-las.”
Henry Ford morreu em 1947, sem conhecer sua cidade amazônica.
FONTE;
Matéria original publicada na Revista do Brasil.
Vitor Nuzzi | Revista do Brasil | Fordlândia (PA) - 30/07/2015 - 11h13