Beirute - A aparição dramática do Da'ish (ISIS) no cenário iraquiano chocou muitos no Ocidente. Muitos ficaram perplexos - e horrorizados - com sua violência e seu magnetismo evidente para a juventude sunita. Mas, mais que isso, eles acham problemática e inexplicável a ambivalência da Arábia Saudita diante dessa manifestação, pensando: "Será que os sauditas não entendem que também são ameaçados pelo ISIS?".
Parece - até mesmo hoje - que a elite que governa a Arábia Saudita está dividida. Alguns aplaudem que o ISIS está combatendo o "fogo" xiita iraniano com "fogo" sunita; que um novo estado sunita está tomando forma no coração do que eles consideram um patrimônio histórico sunita; e que eles são atraídos pela ideologia estritamente salafista do Da'ish.
Outros sauditas têm medo e se lembram da história da revolta contra Abd-al Aziz pelo Ikhwan Wahabista (ressalva: este Ikhwan, ou irmandade, não tem nada a ver com o Ikhwan da Irmandade Muçulmana - por favor, note que todas as referências seguintes são ao Ikhwan Wahabista, não ao Ikhwan da Irmandade Muçulmana), mas que quase implodiu um wahabismo e os al-Saud no fim dos anos 1920.
12/09/2014
Muitos sauditas estão profundamente perturbados pelas doutrinas radicais do Da'ish (ISIS) - e começam a questionar (http://english.alarabiya.net/en/views/news/middle-east/2014/08/17/Plotting-a-conspiracy-on-the-run.html) alguns aspectos da direção e das manifestações da Arábia Saudita.
A dualidade saudita
A discórdia interna na Arábia Saudita e as tensões em relação ao ISIS só podem ser compreendidas entendendo a inerente (e persistente) dualidade que está no cerne da formação doutrinária do reino e de suas origens históricas.
Uma vertente dominante da identidade saudita está ligada diretamente a Muhammad ibn 'Abd al-Wahhab (o fundador do wahabismo) e ao uso de seu puritanismo radical e exclusivista por parte de Ibn Saud. (Este último não era nada além de um líder menor - entre vários - de tribos beduínas eternamente em conflito no forno dos desertos pobres do Nejd.)
A segunda vertente dessa dualidade desconcertante tem relação precisamente com a virada do rei Abd-al Aziz em direção à soberania nos anos 1920: sua repressão à violência dos Ikhwani (para ter status diplomático de estado-nação com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha); sua institucionalização do impulso wahabista original - e a subsequente captura do oportuno jorro de petrodólares nos anos 1970, para canalizar a volátil corrente Ikhwani para fora do país - difundindo uma revolução cultural em vez de uma revolução violenta por todo o mundo muçulmano.
Mas essa "revolução cultural" não era um reformismo dócil. Foi uma revolução baseada no ódio "jacobino" de Abd al-Wahhab pela putrescência e pelos desvarios que ele via a seu redor - donde seu chamado para
livrar o Islã de todas as sua heresias e idolatrias.
Impostores muçulmanos
O jornalista e escritor americano Steve Coll escreveu como Abd al-Wahhab, esse austero e censurador discípulo do estudioso do século 14 Ibn Taymiyyah, odiava a "nobreza egípcia e otomana -- decorosa, artística, fumante de tabaco e de haxixe -- que atravessava a Arábia Saudita para rezar em Meca".
Para Abd al-Wahhab, eles não eram muçulmanos, mas sim impostores se fazendo passar por muçulmanos. E ele tampouco aprovava o comportamento dos beduínos árabes locais. Eles irritavam Abd al-Wahhab com sua devoção a santos, suas lápides e sua "superstição" (como reverenciar túmulos ou lugares considerados particularmente impregnados pelo divino).
Todo esse comportamento foi denunciado por Abd al-Wahhab como bida - proibido por Deus.
Como Taymiyyah antes dele, Abd al-Wahhab via no período que o profeta Maomé passou em Medina um ideal para a sociedade muçulmana ("o melhor dos tempos"), que todos os muçulmanos deveria tentar emular (isso, essencialmente, é o salafismo).
Taymiyyah havia declarado guerra ao xiismo, ao sufismo e à filosofia grega. Ele denunciou as visitas ao túmulo do profeta e a celebração de seu aniversário, declarando que esses comportamentos eram uma mera imitação da adoração dos cristãos por Jesus como Deus (idolatria). Abd al-Wahhab assimilou todos esses ensinamentos, afirmando que "qualquer dúvida ou hesitação" por parte do devoto a respeito dessa interpretação particular do Islã deveria "privar o homem da imunidade de sua propriedade e de sua vida".
Um dos princípios mais importantes da doutrina de al-Wahhab veio a se tornar a ideia do tafkir. Segundo essa doutrina, Abd al-Wahhab e seus seguidores poderiam considerar outros muçulmanos infieis caso eles se envolvessem em atividades que de alguma maneira pudessem contradizer a soberania da Autoridade absoluta (ou seja, o Rei). Abd al-Wahhab denunciou todos os muçulmanos que honravam santos, anjos ou os mortos. Ele afirmava que tais sentimentos desviavam da subserviência completa a Deus, e somente a Deus. O Islã wahabista, portanto, proíbe rezas para santos e pessoas queridas que tenham morrido, peregrinações a tumbas e mesquitas especiais, festivais religiosos que celebrem santos, a lembrança do aniversário de Maomé e até mesmo proíbe o uso de lápides nos túmulos dos mortos.
"Aqueles que não se conformassem com essa visão deveriam ser mortos, suas mulheres e filhas, violadas, e suas posses, confiscadas, escreveu ele."
Abd al-Wahhab exigia conformidade - uma conformidade que deveria ser demonstrada de maneira física e tangível. Ele argumentava que todos os muçulmanos deveriam jurar lealdade individualmente a um único líder muçulmano (um califa, se houvesse um). Aqueles que não se conformassem com essa visão deveriam ser mortos, suas mulheres e filhas, violadas, e suas posses, confiscadas, escreveu ele. A lista de apóstatas merecedores da morte incluía os xiitas, sufistas e outras denominações, as quais al-Wahhab simplesmente não considerava muçulmanas.
Não há nada aqui que separe o wahabismo do ISIS. A cizânia apareceria só mais tarde: da subsequente institucionalização da doutrina de Muhammad ibn 'Abd al-Wahhab de "Um Governante, Uma Autoridade, Uma Mesquita" - esses três pilares se referindo, respectivamente, ao rei saudita, à autoridade absoluta do wahabismo oficial e a seu controle da "palavra" (a mesquita).
É essa cizânia - a negação por parte do ISIS desses três pilares sobre os quais repousa toda a autoridade sunita - que faz do ISIS, no mais inteiramente de acordo com o wahabismo, uma profunda ameaça à Arábia Saudita.
Breve história 1741-1818
A defesa dessas visões ultra-radicais por parte de Abd al-Wahhab inevitavelmente levaram à sua expulsão de sua própria cidade - e, em 1741, depois de uma perambulação, ele achou refúgio sob a proteção de Ibn Saud e sua tribo. O que Ibn Saud viu nos ensinamentos de al-Wahhab foi um meio de derrubar as tradições e convenções do mundo árabe. Era um caminho para tomar o poder.
"A estratégia - como a do ISIS hoje - era subjugar as populações conquistadas. Eles queriam incutir o medo."
O clã de Ibn Saud, se aproveitando da doutrina de al-Wahhab, agora poderia continuar fazendo o mesmo de sempre, ou seja, atacar vilarejos vizinhos para roubar. Mas agora eles o fariam não no âmbito da tradição árabe, mas sim sob a bandeira da jihad. Ibn Saud e al-Wahhab também reintroduziram a ideia do martírio em nome da jihad, pois ela garantia aos mártires entrada imediata no paraíso.
No começo, eles conquistaram algumas comunidades locais e impuseram sobre elas suas leis. (Os conquistados tinham uma escolha: conversão ao wahabbismo ou a morte.) Em 1790, a Aliança controlava a maior parte da península arábica e atacava repetidamente Medina, a Síria e o Iraque.
A estratégia - como a do ISIS hoje - era subjugar as populações conquistadas. Eles queriam incutir o medo. Em 1801, os aliados atacaram a cidade sagrada de Karbala, no Iraque. Eles massacraram milhares de xiitas, incluindo mulheres e crianças. Muitos templos xiitas foram destruídos, incluindo o templo do imã Hussein, o neto de Maomé assassinado.
Uma autoridade britânica, o tenente Francis Warden, observou a situação na época e escreveu: "Eles pilharam tudo [Karbala], e saquearam a Tumba de Hussein... matando mais de cinco mil habitantes com crueldade peculiar."
Osman Ibn Bishr Najdi, o historiador do primeiro estado saudita, escreveu que Ibn Saud cometeu um massacre em Karbala em 1801. Ele documentou o massacre orgulhosamente, dizendo: "Tomamos Karbala e assassinamos e tomamos as pessoas (como escravos), glória a Alá rei dos mundos, e não nos desculpamos por isso, dizendo 'aos infieis, o mesmo tratamento'".
Em 1803, Abdul Aziz entrou na cidade sagrada de Meca, que se rendeu diante do terror e do pânico (o mesmo aconteceria com Medina). Os seguidores de Abd al-Wahhab destruíram monumentos históricos e todas as tumbas e templos históricos do lugar. Ao fim, eles tinham destruído séculos de arquitetura islâmica perto da Grande Mesquita.
Mas, em novembro de 1803, um assassino xiita matou o rei Abdul Aziz (como vingança pelo massacre de Karbala). Seu filho, Saud bin Abd al Aziz, o sucedeu e continuou a conquista da Arábia. Os governantes otomanos, porém, não podiam mais ficar de braços cruzados, assistindo seu império ser devorado aos poucos. Em 1812, o exército otomano, composto de egípcios, expulsou a Aliança de Medina, Jidá e Meca. Em 1814, Saud bin Abd al Aziz morreu de febre. Seu infeliz filho Abdullah bin Saud, porém, foi levado pelos otomanos para Istambul, onde foi executado cruelmente (um visitante em Istambul relatou ver o herdeiro sendo humilhado nas ruas da cidade durante três dias, depois enforcado e degolado, sua cabeça atirada de um canhão, seu coração retirado e empalado em seu corpo).
Em 1815, as forças wahabistas foram massacradas pelos egípcios (agindo em nome dos otomanos) em uma batalha decisiva. Em 1818, os otomanos capturaram e destruíram a capital wahabista de Dariyah. Era o fim do primeiro estado saudita. Os poucos wahabistas remanescentes fugiram para o deserto para se reagrupar e lá ficaram, quietos, pela maior parte do século 19.
A história retorna com o Isis
Não é difícil entender como a fundação do Estado Islâmico pelo ISIS no Iraque contemporâneo possa ressoar entre aqueles que se lembram dessa história. De fato, o ethos do wahabismo do século 18 não só não morreu em Nejd, mas voltou à vida com força com o colapso do Império Otomano em meio ao caos da Primeira Guerra.
Os Al Saud - nesse renascimento do século 20 - foram liderados pelo lacônico e politicamente astuto Abd-al Aziz, que, unindo tribos beduínas divergentes, lançou o "Ikhwan" saudita no espírito dos antigos combatentes proselitistas de Abd-al Wahhab e Ibn Saud.
O Ikhwan era uma reencarnação do movimento de vanguarda feroz e semiindependente de wahabistas do passado, os "moralistas" que quase conseguiram tomar a Arábia no começo do século 19. Assim como antes, o Ikhwan capturou Meca, Medina e Jidá entre 1914 e 1926. Abd-al Aziz, entretanto, começou a perceber que seus interesses mais amplos estavam sendo ameaçados pelo "jacobinismo" revolucionário exibido pelo Ikhwan. O Ikhwan se revoltou - levando a uma guerra civil que durou até os anos 1930, quando o rei os sacrificou: ele os massacrou com metralhadoras.
Para este rei (Abd-al Aziz), as realidades simples das décadas passadas estavam se erodindo. O petróleo estava sendo descoberto na península. A Grã-Bretanha e os Estados Unidos o cortejavam, mas ainda estavam inclinados a apoiar Sharif Husain como o único governante legítimo da Arábia. Os sauditas precisavam desenvolver uma postura diplomática mais sofisticada.
O wahabismo, então, foi transformado à força: o que era um movimento de jihad revolucionária e purificação teológica tafkiri passou a ser um movimento conservador de da'wa (chamado islâmico) social, político, teológico e religioso, que justificava a instituição que mantém a lealdade à família real saudita e ao poder absoluto do rei.
O crescimento do petróleo e o wahabismo
Com o advento da bonança do petróleo - como escreve o estudioso francês Giles Kepel, os objetivos sauditas eram "espalhar o wahabismo pelo mundo muçulmano... para 'wahabisar' o Islã e, portanto, para reduzir a 'multidão de vozes dentro da religião' a uma 'crença única'" -, deu-se início a um movimento que transcenderia divisões nacionais. Bilhões e bilhões de dólares foram - e continuam sendo - investidos nessa manifestação de soft power.
Foi essa inebriante mistura de projeção de um soft power bilionário - e a disposição dos sauditas de gerenciar o Islã sunita tanto para estender os interesses americanos como para ao embutir o wahabismo educacional, social e culturalmente por todas as terras do Islã - que criou uma política ocidental dependente da Arábia Saudita, uma dependência que se mantém desde o encontro de Abd-al Aziz com Roosevelt em um navio de guerra americano (na volta do presidente dos Estados Unidos da Conferência de Ialta) até hoje.
Os ocidentais olhavam para o reino, e esse olhar era tomado pela riqueza; pela aparente modernização; pela professada liderança do mundo islâmico. Eles escolheram presumir que o reino estava se dobrando aos imperativos do mundo moderno - e que o gerenciamento do mundo sunita dobraria também o reino à vida moderna.
"Por um lado, o ISIS é profundamente wahabista. Por outro, é ultra radical de um jeito diferente. Ele pode ser visto essencialmente como um movimento corretivo do wahabismo contemporâneo."
Mas a abordagem do Ikhwan saudita em relação ao Islã não morreu nos anos 1930. Ela recuou, mas manteve controle de partes do sistema - daí a dualidade que observamos hoje na atitude saudita para com o ISIS.
Por um lado, o ISIS é profundamente wahabista. Por outro, é ultra radical de um jeito diferente. Ele pode ser visto essencialmente como um movimento corretivo do wahabismo contemporâneo.
O ISIS é um movimento "pós-Medina": ele se mira nas ações dos dois primeiros califas como fonte de emulação, ao invés de Maomé, e rejeita definitivamente a autoridade reivindicada pelos sauditas.
Na era do petróleo, a monarquia saudita se tornou uma instituição cada vez mais inflada, e nesse período o apelo da mensagem do Ikhwan ganhou terreno (apesar da campanha de modernização do rei Faisal). A "abordagem do Ikhwan" desfrutou - e ainda desfruta - do apoio de muitos homens e mulheres proeminentes, assim como dos xeques. De certa maneira, Osama bin Laden era precisamente o representante de um florescimento tardio dessa abordagem do Ikhwan.
Hoje, a disputa do ISIS com relação à legitimidade do rei não é vista como algo problemático, mas sim como uma volta às origens do projeto wahabista-saudita.
No gerenciamento colaborativo da região por sauditas e pelo Ocidente, em nome de vários projetos ocidentais (a oposição ao socialismo, ao Ba'athismo, ao Nasserismo e às influências soviética e iraniana), os políticos ocidentais destacaram suas leituras escolhidas da Arábia Saudita (riqueza, modernização e influência), mas escolheram ignorar o impulso wahabista.
Afinal de contas, os movimentos islâmicos mais radicais eram vistos pelos serviços de inteligência ocidentais como uma arma eficiente no combate à União Soviética no Afeganistão - e no combate aos líderes e estados do Oriente Médio que deixaram de servir aos interesses ocidentais.
Assim, por que deveríamos nos surpreender, se do mandato saudita-ocidental do príncipe Bandar para gerenciar a insurgência síria contra o regime de Assad surgiu um movimento neo-Ikwhan violento? E por que deveríamos nos surpreender - conhecendo pouco do wahabismo - que os insurgentes "moderados" da Síria se tornariam mais raros que os míticos unicórnios? Por que imaginamos que o wahabismo radical criaria moderados? Ou como poderíamos imaginar que a doutrina de "Um líder, Uma autoridade, Uma mesquita: submeta-se ou morra" poderia levar à tolerância ou à moderação?
Ou, talvez, nunca tenhamos imaginado.
fonte; brasil post
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