Fahrenheit 451 – Ray Bradbury LIVRO PDF




Fahrenheit 451A temperatura a que um livro se inflama e consome... PRIMEIRA PARTE - 

A Fornalha e a Salamandra QUEIMAR ERA UM PRAZER. Era um prazer muito especial ver as coisas arderem, vê-las calcinar-se e mudar. 

Punho de cobre na mão, armado desse imenso piton que cuspia o veneno da sua gasolina sobre o mundo, sentia o sangue bater-lhe nas têmporas e as suas mãos tornavam-se as mãos de uma espécie de maestro prodigioso dirigindo todas as sinfonias do fogo e do incêndio, ao ritmo das quais se desmoronavam os farrapos e as ruínas carbonizadas da história. 

01/04/2018


Avançou, entre um fulgor de pirilampos. Teria gostado acima de tudo, segundo a velha tradição, de mergulhar no braseiro uma alcachofra presa na ponta de um pau, enquanto os livros, com um bater de asas, morriam no umbral da casa e no jardim. 

Enquanto os livros se estorciam entre nuvens de fagulhas e partiam, calcinados, com o vento. Montag sorriu, com o áspero sorriso de todos os homens chamuscados e repelidos pelas chamas. Sabia que, ao voltar à caserna dos bombeiros, poderia contemplar-se ao espelho, piscando os olhos, transformado em trovador, escurecido como a cortiça queimada. Mais tarde, antes de adormecer na escuridão, sentiria ainda os músculos do rosto arrepanhados pelo sorriso do fogo. Nunca esse sorriso o abandonava, nunca o tinha abandonado, tanto quanto se podia lembrar. Tirou o capacete negro, de reflexos acobreados, e limpou-o. Pendurou com cuidado o seu casaco ignífugo; tomou um banho, voluptuosamente; depois, de mãos nas algibeiras e assobiando, atravessou o andar superior do edifício e deixou-se escorregar pelo poço central. No último momento, quase a esmagar-se em baixo, tirou as mãos das algibeiras e travou a descida, agarrado à vara de bronze. Os pés a alguns centímetros do chão de cimento, imobilizou-se num silvo agudo. Saiu da caserna e dirigiu-se ao "metro", pela rua nocturna. O comboio, movido a ar comprimido, deslizava sem ruído ao longo do túnel subterrâneo e depositou-o, entre uma nuvem de ar quente, no patamar movediço da escada automática que subia para os arredores da cidade. Assobiando sempre, deixou-se conduzir pela escada até às margens da noite, no ar tranqüilo. Caminhou até à esquina da rua, sem pensar em nada. No entanto, antes de a atingir, diminuiu o passo, como sob o efeito de um súbito golpe de vento, como se tivesse ouvido chamar pelo seu nome. Durante as últimas noites, ao voltar para casa, sob o céu estrelado, tinha experimentado uma vaga sensação sempre naquele lugar, antes de atingir a esquina. Tinha sentido como que uma presença, no momento de a dobrar. O ar parecia carregado de uma estranha calma. Alguém o esperava, imóvel, e, um instante antes da sua chegada, transformava-se em sombra e deixava-o passar. inútil tentar compreender. Cada vez que mudava de direcção, nada mais via do que a curva branca e deserta do passeio. Talvez, uma noite, tivesse entrevisto um movimento fugitivo em qualquer jardim, já desaparecido antes que lhe tivesse sido possível dizer uma palavra. Mas, nessa noite, quase parou. Tinha-lhe parecido ouvir um murmúrio apenas perceptível. Uma respiração? Ou apenas o ar que se comprimia contra o ser que o esperava, de pé, silencioso? Virou a esquina. As folhas do Outono voavam rente ao chão iluminado pelo luar e a rapariga que caminhava em sua direcção, como sobre uma passadeira rolante, parecia deixar-se levar pelo movimento do vento e das folhas. A cabeça inclinada para a frente, olhava os sapatos, entre os remoinhos circulares da folhagem. Tinha um pequeno rosto de um branco leitoso, com uma expressão terna e ávida de insa- ciável curiosidade por tudo o que a rodeava. Os olhos sombrios, de expressão surpreendida, fixavam-se no mundo com uma tal intensidade que nenhum movimento das coisas lhe podia escapar. Vestia um fato branco com pregas murmurantes. Ele quase julgou ouvir o movimento das suas mãos enquanto ela se aproximava, depois um leve ruído quando voltou o rosto pálido, descobrindo à sua frente um homem que a esperava, parado no meio do passeio. Sobre eles, num remoto agitar de folhas, as árvores deixavam tombar suavemente a sua chuva seca. A rapariga parou, pareceu querer voltar para trás, mas, em vez disso, fixou em Montag uns olhos tão negros, tão brilhantes e tão cheios de vida que ele teve a impressão de ter dito qualquer coisa de maravilhoso. Mas sabia que apenas tinha mexido os lábios para dizer "boa noite". Depois, como ela parecia hipnotizada pela salamandra bordada no braço e pelo círculo encerrando uma fénix do seu peito, ele falou de novo: — É verdade — disse—, você é a nossa nova vizinha, não é assim? — E o senhor deve ser... — ela desviou o olhar das insígnias profissionais — ... bombeiro. — Disse isso de uma maneira curiosa! — Eu... eu tê-lo-ia reconhecido de olhos fechados — respondeu lentamente. — Ah... o cheiro da gasolina? A minha mulher gosta dele — disse Montag, rindo. — Nunca se consegue fazê-lo desaparecer completamente. — Pois não — retorquiu ela, em voz baixa. — A gasolina — continuou Montag, no silêncio que se prolongava — para mim é um perfume. — Está a falar a sério? — Claro, porque não? Ela reflectiu um momento. — Não sei... Dá-me licença que vá consigo? Chamo-me Clarisse McClellan. — Clarisse. Guy Montag. Vamos. Que faz na rua a estas horas? Que idade tem? Caminhavam na brisa simultaneamente morna e fresca da noite, sobre o passeio de prata. Um ligeiro perfume de pêssegos maduros e morangos flutuava no ar. Ele olhou em volta e notou que tal coisa era impossível, em época tão avançada do ano. — Parece-me que lhe devo dizer — disse Clarisse.— Tenho dezassete anos e sou maluca. O meu tio afirma que as duas coisas acontecem sempre ao mesmo tempo. "Se te perguntarem a idade", diz-me ele, "responde sempre que tens dezassete anos e que não és boa da cabeça." Mas não acha que é uma maravilhosa hora para dar um passeio? Gosto de cheirar as coisas, de as olhar, e algumas vezes passo a noite de pé, a andar, e vejo o Sol nascer. Deram mais alguns passos em silêncio. Depois ela declarou, pensativamente: — Sabe, não tenho medo nenhum de si. — Porque havia de o ter? — perguntou Montag, surpreendido. — Tanta gente tem medo! Medo dos bombeiros, quero dizer. Mas o senhor, apesar de tudo, é apenas um homem... Clarisse virou o rosto para ele, um rosto de cristal leitoso e frágil, iluminado por uma luz doce e contínua. Não era a luz histérica da electricidade mas... —como dizer? — ... mas a luz estranhamente confortável e rara, a luz acariciadora de uma vela. Um dia, quando ele era pequeno, durante uma falta de electricidade, sua mãe tinha encontrado e aceso uma última vela e, durante uma breve hora, tinham redescoberto que o espaço, nessa claridade, perdia as suas vastas dimensões e enrolava-se, amigo, à volta deles, e ambos, mãe e filho, sós, transformados, tinham desejado que a corrente não voltasse tão depressa... — Permite que lhe faça uma pergunta? — disse, de súbito, Clarisse. — Há quanto tempo trabalha como bombeiro? — Há dez anos. Tinha então vinte. — Nunca lê os livros que queima? Montag riu. — É contra a lei. — Ah, é verdade! — É um bom trabalho. Segunda-feira queimar Millay, quarta-feira Whitman, sexta-feira Faulkner, transformá-los em cinzas, e depois queimar as cinzas. É o nosso estribilho oficial. Andaram mais alguns metros. Depois, Clarisse perguntou: — É verdade que dantes os bombeiros apagavam o fogo em vez de o acender? — Não. As casas foram sempre ignífugas, creio. — É estranho. Ouvi dizer uma vez que, há muito tempo, as casas incendiavam-se algumas vezes por acidente e que chamavam os bombeiros para apagar o incêndio. Montag tornou a rir. — Porque ri? — perguntou-lhe a rapariga. — Não sei. Deu ainda uma gargalhada, e parou. — Porquê? Ri quando eu nada digo de engraçado e responde imediatamente. Nunca pensa nas perguntas que lhe fazem. Ele parou de andar. — Você é que é estranha — disse, olhando-a. — Não tem respeito por coisa alguma? — Não queria ofendê-lo. Parece-me apenas que gosto de ver as reacções das pessoas. — E isto não lhe diz nada? — perguntou Montag, apontando o 451 bordado na manga suja de fumo. — Sim — murmurou ela, e acelerou o passo. — Já viu passar os automóveis de jacto, nas avenidas? — Está a mudar de assunto! — Algumas vezes penso que os condutores nem sequer sabem o que pode ser a erva ou as flores. Vão sempre tão depressa! Se se aponta a um condutor uma mancha vaga e verde, ele deve dizer: "Oh, claro, é erva! Uma mancha rosada? São rosas num jardim! As manchas brancas são casas. As castanhas, vacas." Uma vez o meu tio conduziu lentamente numa auto-estrada — apenas a setenta por hora. Meteram-no na prisão por dez dias. É esquisito, não acha?... E triste, também! — Pensa de mais — disse Montag, pouco à vontade. — Raramente olho para a televisão mural, nunca vou às corridas ou aos parques de atracções. Por isso tenho muito tempo para pensar idéias esquisitas. Viu os cartazes de cem metros de comprimento no campo, à saída da cidade? Sabe que dantes tinham apenas uma dezena de metros? Mas os carros vão tão depressa agora que tiveram de perlongá-los para que a publicidade conserve ainda o seu efeito. — Não sabia — disse Montag, com um riso seco. — Aposto que posso ainda ensinar-lhe outra coisa. De manhã há orvalho nas ervas. Ele sentiu-se subitamente incapaz de se lembrar se o sabia ou não e experimentou uma viva irritação. — E se olhar bem...—Clarisse ergueu a cabeça para o céu — verá um homem na Lua. Há muito tempo já que ele não olhava a Lua. Acabaram o trajecto num silêncio, para ela pensativo, para ele contrariado, crispado. Chegaram à casa da rapariga. Todas as janelas estavam iluminadas. — Que se passa? Raramente Montag tinha visto um tal desperdício de iluminação. — Oh, é apenas o meu pai e a minha mãe que conversam com o meu tio... É um pouco como passear a pé, mas ainda mais estranho! Meu tio foi preso uma outra vez. Não lhe contei já?... Porque passeava a pé. Oh, nós somos umas pessoas muito especiais! — Mas conversar a respeito de quê? Ela contentou-se em rir. — Boa noite — disse. E entrou no jardim. Depois, pareceu lembrar-se de qualquer coisa, voltou para trás e pousou em Montag um olhar curioso. — É feliz? — Sou o quê? — gritou ele. Mas Clarisse já tinha partido, correndo, ao luar. E a porta fechou-se docemente atrás dela. Feliz! Que idiotice. Tinha deixado de rir. Colocou a mão no fecho da porta e fez-lhe reconhecer as impressões digitais. A porta abriu-se. "Naturalmente que sou feliz! Que pensa ela? Que o não sou?" Ergueu os olhos para a rede do ventilador no corredor e, de repente, lembrou-se que alguma coisa estava escondida atrás dessa rede, qualquer coisa que parecia observá-lo nesse momento, lá de cima. Desviou vivamente o olhar. Que encontro estranho nessa estranha noite! Não se lembrava de nenhuma aventura semelhante a não ser, um ano atrás, o encontro, numa tarde no parque, de um velhote com o qual tinha ío... Montag sacudiu a cabeça e olhou a parede nua. O rosto da rapariga lá estava, à sua frente, de uma grande beleza na sua memória — espantoso, de facto. Ela tinha um rosto muito delicado, evocando o mostrador de um pequeno relógio entrevisto num quarto às escuras quando, no meio da noite, acordamos para ver as horas... E o relógio diz-nos a hora, o minuto e o segundo, numa auréola pálida e silenciosa, anuncia-nos, com toda a certeza da sua sabedoria, que a noite desliza e mergulha nas trevas mas, ao mesmo tempo, avança para um novo sol. Montag abriu a porta do quarto. Dir-se-ia ter penetrado num mausoléu de mármore, numa noite sem lua. Obscuridade total, nem o menor reflexo do mundo prateado do exterior, trevas hermeticamente fechadas; o quarto era como uma cave onde nenhum rumor da imensa cidade pudesse penetrar. Mas não estava vazio. Apurou o ouvido. O delicado zumbido de um mosquito no ar, o murmúrio eléctrico de uma vespa invisível recolhida no seu ninho rosado e quente. Conseguiu quase seguir a melodia da música que se elevava. Sentiu o sorriso gelar-se-lhe no rosto, fundir-se, como a cera de uma vela, fantástica, que arde há muito tempo já, se derrete e apaga a chama. Noite negra. Não era feliz. Não era feliz. Repetiu a frase. Ela exprimia um facto. Usava a felicidade como uma máscara e a rapariga tinha fugido através do jardim com essa máscara. Não existia nenhum meio de lhe ir bater à porta e de lha pedir. Sem acender a luz, imaginou o aspecto do quarto. A sua mulher estendida na cama, fria, como um cadáver estendido num túmulo, os olhos fixos no tecto por invisíveis fios de aço, imutáveis. E nas orelhas as pequenas conchas, os micro-rádios colocados com extremo cuidado, e um oceano electrónico de sons de música, de palavras, de música, de palavras, batendo sem cessar na margem do seu espírito sempre acordado. Na verdade, o quarto estava bem va^io. Cada noite, as vagas vinham e levavam-na, flutuando de olhos abertos, nas suas cristas, para a manhã. Durante dez anos nem uma só noite tinha passado sem que Mildred nadasse nesse mar, sem que aí mergulhasse com delícia. O quarto estava fresco e, no entanto, ele não conseguia ali respirar. Com a sensação de um homem que em breve vai morrer de asfixia, dirigiu-se às apalpadelas para a sua cama aberta, separada, fria. O pé chocou-se com qualquer coisa. O objecto emitiu um som surdo e deslizou, no escuro. Imóvel, direito, escutou o ser estendido sobre a cama, na noite sem rosto. O sopro exalado pelas narinas era tão fraco que apenas fazia palpitar os extremos mais distantes da vida, uma folha minúscula, uma pluma negra, um único cabelo. Recusando-se sempre a deixar entrar a luz de fora, tirou o acendedor da algibeira, apalpou a salamandra gravada no seu disco de prata e fez um gesto seco... Duas pedras de lua acenderam-se, como dois olhos erguidos para ele à luz da pequena chama que tinha na mão; duas pedras de lua afogadas no fundo de um rio transparente e sob as quais corria a vida do mundo, sem as tocar. — Mildred! O rosto dela era como uma ilha coberta de neve, lavado por uma chuva de que não sentia as gotas, sobrevoado por nuvens de sombras móveis, mas que não via. Apenas se ouvia o zunido de vespa dos pequenos aparelhos que lhe obturavam as orelhas. De olhos vítreos, parecia duvidar do ritmo doce e fraco da sua respiração. O objecto que ele tinha projectado com o pé brilhava agora junto do seu próprio leito. O pequeno frasco do remédio para dormir, que de dia continha ainda trinta comprimidos, jazia agora destapado e vazio. Enquanto ele se conservava quieto e silencioso, um terrível rugido atravessou o espaço, por cima da casa. Duas mãos gigantescas rasgavam quilômetros de silêncio. Montag, como que despedaçado, sentiu o peito abrir-se e explodir. Os bombardeiros de jacto que passavam, um, dois, um, dois, um, dois, eram seis, nove, doze, uivavam para ele. Abriu a boca e deixou sair um urro estridente por entre os dentes arreganhados. As pedras de lua desapareceram. Sentiu a mão mergulhar para o telefone. Os aviões estavam longe. Os seus lábios aproximaram-se do aparelho. — Clínica de urgência. — Um murmúrio terrível. Pensou que as estrelas tinham sido pulverizadas pelos aviões negros e que, de manhã, a sua poeira cobriria a terra como uma estranha neve. Tal foi a sua absurda reflexão enquanto tremia na escuridão, agitando os lábios sem cessar. Eles tinham um aparelho. Na verdade, tinham mesmo dois aparelhos. Um deles mergulhava no estômago como uma cobra de azeviche num poço forrado de ecos, à procura da água e do tempo que aí se corrompia. Aspirava o líquido verde que vinha à superfície num borbulhar pastoso. Beberia ele a escuridão? Sugaria ele todos os venenos acumulados com os anos? Alimentava-se em silêncio, emitindo de vez em quando uma espécie de soluço estrangulado. E tinha um olho. O operador, indiferente, que trabalhava com a máquina podia, munido de um capacete óptico especial, mergulhar o olhar na alma do paciente a quem sugava as entranhas. Que via o Olho? Não o dizia. O homem via, mas sem ver o que via o Olho. A operação tinha uma vaga semelhança com a limpeza de uma fossa no fundo de um velho pátio. A mulher, estendida na cama, nada mais era que um pedaço de mármore. O operador, de pé, fumava um cigarro. O outro aparelho funcionava igualmente. Era manobrado por um indivíduo também indiferente, t vestindo um fato impermeável, ca stanho-avermelhado. Essa máquina sugava todo o sangue do corpo e substituía-o por sangue fresco e sérum. — É necessário fazer duas limpezas — disse o operador, de pé, junto da mulher silenciosa. — Não vale a pena limpar o estômago se não se limpa o sangue. Deixem todas essas porcarias no sangue e o sangue ataca o cérebro como um martelo, bang! bang! E, algum tempo depois, as meninges vão-se abaixo e tudo acaba. — Basta —disse Montag. — Era apenas para lhe explicar... — concluiu o operador. — Acabaram? — perguntou Montag. — Acabámos. A raiva de Montag nem sequer os atingia. Conservavam-se à sua frente, com o fumo dos cigarros a enrolar-se em volutas à volta do nariz, a subir-lhes para os olhos que não pestanejavam. — São cinqüenta dólares. — Porque não me dizem primeiro se ela está fora de perigo? — Evidentemente que está fora de perigo. Vamos levar toda esta porcaria na nossa mala. Como lhe dizia, chupa-se o que está velho para pôr novo em seu lugar e tudo fica outra vez certo. — Nenhum de vocês é médico. Porque não enviou o Serviço de Urgência um médico? — Para quê?—O cigarro do operador oscilava-lhe ao canto da boca. — Casos como este, há nove ou dez por noite. Temos visto tantos, de há uns anos para cá, que se mandaram construir máquinas especiais. Apenas a lente óptica é uma novidade, o resto é já velho. Para casos como este não é preciso um médico. Tudo o que é preciso são dois tipos afinados, para liquidar o assunto em meia hora. Bem — dirigiu-se para a porta —, temos de nos pôr a andar. Acabamos de receber nova chamada no nosso micro-rádio. Perto daqui. Um tipo que engoliu um tubo de pílulas, inteirinho. Previna-nos, se voltar a precisar de nós; ela que se conserve tranqüila. Demos-lhe um contra-sedativo. Vai acordar cheia de fome. Até à vista. E os homens de cigarros pendentes das bocas em cicatriz, os homens com olhos de intoxicados, ergueram a sua carga de máquinas e tubos, a sua caixa de melancolia líquida, a sua inominável escória sombria e viscosa, e saíram com passo arrastado. Montag deixou-se cair numa cadeira e ficou a contemplar a mulher. Ela estava de olhos fechados. Pôs-lhe a mão em frente da boca, para lhe sentir a respiração tépida. — Mildred — disse, finalmente. "Somos de mais", pensou ele. "Somos biliões, e isso é muito. Ninguém conhece ninguém. Desconhecidos aparecem e violentam-vos. Desconhecidos aparecem e arrancam—vos o coração. Desconhecidos chegam e tiram-vos o sangue. Bom Deus, quem eram esses homens? Nunca os tinha visto na minha vida!" Meia hora passou. O fluxo sangüíneo da mulher tinha sido inteiramente renovado e parecia tê-la transformado. As faces estavam rosadas, os lábios muito frescos e coloridos. Pareciam doces e repousados. O sangue de qualquer outro corria ali. Se, ao menos, eles tivessem também levado o seu espírito para a tinturaria, para lhe limpar as algibeiras, passá-lo a ferro, remodelá-lo e torná-lo a trazer de manhã! Se, ao menos... Levantou-se e foi abrir as janelas para deixar entrar o ar da noite. Eram duas horas da manhã. Teria passado apenas uma hora desde o seu encontro com Clarisse McClellan na rua, a sua volta para casa, o seu pontapé no pequeno frasco de cristal? Apenas uma hora, mas o mundo tinha-se dissolvido e ressurgido sob uma forma nova e sem cor. Risos soavam no outro lado, do jardim banhado pelo luar, na casa de Clarisse, onde os seus pais e o seu tio conversavam calmamente.

 Eram risadas alegres, calorosas, sem sombra de medo e elevavam-se da casa brilhantemente iluminada no meio da noite, enquanto todas as outras casas estavam mergulhadas na escuridão. Montag ouvia as vozes falando, falando, respondendo-se, falando e tecendo a sua rede hipnótica. I...

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2 opmerkings:

  1. Deletaram o livro..... podem fazer upload noutra plataforma que evite a exclusão? É a limpeza global, da qual a g00gle faz parte...

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  2. Para leitura online: https://pt.scribd.com/doc/238275522/Fahrenheit-451

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