O Portugal das aparições. Um país "mesquinho, empobrecido e atrasado"
O país tinha 5,9 milhões de habitantes e mais de 70% eram analfabetos.
A dívida pública aumentou e o custo de vida tornou-se proibitivo, sobretudo em Lisboa. Fátima não aparecia nas estatísticas e a experiência dos três pastorinhos de Aljustrel, encerrada com o “milagre do Sol” em Outubro, estava longe de dominar as preocupações nacionais.
O envio de tropas para França e a encruzilhada económica do país, a acumular 10.000 contos mensais em despesas de guerra, fizeram crescer o desencanto com a República naquele que era o seu sétimo ano de vida.
09/05/2017
Domingo, 13 de maio de 1917. A vida vai mudar para Francisco, Jacinta e Lúcia, mudará em Fátima e na história da Igreja. Nada o faz antever, embora os rumores e as dúvidas em torno das aparições, como contariam mais tarde as páginas do jornal “O Século” – na altura o diário de maior circulação no país – viessem a espalhar-se rapidamente.
Na primeira página deste dia, os temas eram os mesmos das semanas anteriores. Portugal estava oficialmente entre as nações “beligerantes” do conflito europeu desde março do ano anterior, depois da declaração de guerra da Alemanha em março de 1916.
A economia nacional, demasiado dependente das importações numa altura em que escasseavam as formas de fazer chegar ao país alimentos e matérias primas, mostrava a sua fraqueza e a falta de rumo tornava-se evidente. “Precisamos de convencer-nos de que estamos em guerra; que nações comercialmente muito mais poderosas do que a nossa já puzeram de parte, há muito, comodidades que nós teimamos em conservar”, lia-se no editorial d’ “O Século” desse dia em que três crianças viram Nossa Senhora aparecer, brilhando, na Cova da Iria. “Que na Inglaterra se come pão feito de trigo, aveia e centeio, 12 horas depois de cosido e que o consumo é restrito, enquanto em Portugal se torce o nariz quando ele não é branco e fresco”, continuava o jornal. “Que em França, desde o dia 10 do corrente, não haverá mais confeitarias e pastelarias e que nós, pelo contrário, temos cada vez maior abundância de bolos e pastéis – desde as mercearias e leitarias, às sobremesas dos restaurantes ainda os mais modestos”. O problema era o custo das mercadorias e o preço de tudo, cada vez mais alto, em particular em Lisboa. “Estamos em guerra! Eis o grito que devíamos, a cada hora, fazer ouvir (...) Compremos o menos que pudermos ao estrangeiro. Não temos ouro, nem d’onde ele nos venha! O dever é, portanto, gastar menos.”
Para traçar um retrato do Portugal de há 100 anos, o i consultou o arquivo do jornal e o anuário estatístico de 1917, cedido pelo Instituto Nacional de Estatística . O país tinha 5,9 milhões de habitantes, mas a população estava a crescer a velocidade de cruzeiro – neste ano, o saldo natural (a diferença entre nascimentos e mortes que hoje é negativa) seria de 55 mil habitantes. Mesmo com os perdidos em combate. Na população, porém, apesar dos esforços da Primeira República para o reforço da instrução primária, reinava o analfabetismo e a pobreza. Mais de 70% dos “varões” e das “ fêmeas”, como catalogava na altura os dados da Direção-Geral de Estatísticas, não sabia ler nem escrever, como era o caso dos pastorinhos.
O ano, o terceiro da primeira grande guerra, começara nas sombras o conflito, ainda assim com algum optimismo. “O ano de 1916 foi, incontestavelmente, muito melhor para os exércitos da Entente [a aliança militar entre Reino Unido, França e Império Russo contra a Alemanha]. (...) O inimigo já deu em Verdun indícios de quebramento sintomático, rendendo-se por milhares às tropas do general Mangin”, contava “O Século” de 1 de janeiro de 1917. A Áustria tinha perdido 800 mil homens, a Alemanha mais de um milhão. Portugal estava prestes a assumir um papel ativo como aliado (honrando os compromissos de longos séculos de aliança com Inglaterra, justificaria o governo) e a mandar o primeiro contingente para a frente de batalha em França, depois de até então só estar mobilizado na defesa das colónias em África.
“Coragem não falta” O embarque começa ainda em janeiro e continuará nos meses seguintes. Os elogios aos soldados portugueses não tardam, assim como os relatos do conflito. Logo em fevereiro, o diário dá conta de um deles: “Um oficial do nosso exército há pouco chegado a Franca escreve a um parente. ‘Recebi o seu postal, o que muito agradeço, e que por singular acaso foi a primeira correspondência que recebi do nosso Portugal. Agora já lhe posso dizer uma coisa que lhe deve ser agradável, estive na front dez dias e lá experimentei os canhões aliados, tendo feito algumas centenas de tiros contra os boches. Cheguei à 1.ª fila das trincheiras ou seja, a 80 metros d’eles. De resto, nada mais posso dizer-lhe, a não ser que coragem não falta.”
O jornal vai dando conta diariamente dos elogios à organização e “perguntas inteligentes” dos oficiais do Corpo Expedicionário Português, à medida que começam também a ser publicadas caixas com o “rol de honra”, das baixas em França. Começam as manifestações de apoio populares, dos anúncios por madrinhas de guerra a campanhas locais, hoje difíceis de imaginar. “Acompanhados por dois diretores das escolas de S. Nicolau, teem os alunos das ditas escolas percorrido os escritórios das casas comerciais daquela freguesia, pedindo donativos para os cigarros dos nossos soldados que vão para os campos da batalha, tendo sido muito bem recebidos, atendendo ao fim simpático a que é destinado o produto. Até ontem já tinham recebido donativos na importância de 60$50.”
Em julho, uma nota de primeira página fala da impressão causada pelos portugueses aos estrangeiros e apresenta a sua alcunha. “O ‘Temps’ e outros jornais continuam a ocupar-se dos portugueses nos mais simpáticos termos, afirmando que eles fazem magnífica figura e acentuando que o comunicado britânico prestou homenagem à sua bravura e às grandes qualidades do povo aliado. Os ‘tommies’ puseram ao soldado português a alcunha de António, cuja abreviatura (Tony) se harmoniza com tommy. Os ‘Antónios’ – dizem os jornaes – são ardosos e aguentam com valentia o choque do inimigo, no sério raid de trincheiras por este efetuado, merecendo por isso, os cumprimentos do comandante em chefe britânico”.
De regresso da primeira visita à frente de batalha, Norton de Matos, o ministro de guerra do governo liderado por Afonso Costa, nota o mesmo. “Percorri toda a frente portuguesa. Estive nas nossas trincheiras, na primeira linha, a 150 metros dos alemães. Vi as devastações dos ataques inimigos. Constatei o admirável moral das nossas tropas, que estão conquistando – é preciso dizê-lo – a admiração e o respeito de todos os nossos aliados. Houve até este momento cinco raids alemães sobre a nossa frente, ataques que foram todos corajosamente repelidos. O mais violento desses ataques, que durou oito horas, foi na tarde de 12 e noite de 13 de junho, a noite de Santo António. Várias granadas de gazes asfixiantes foram lançadas, tendo nós tido cento e tantos soldados atingidos pela temível intoxicação e postos fora de combate. Os esforços inimigos ficaram, porém, malogrados inteiramente. As nossas tropas, que deram altas provas de disciplina e heroísmo, ficaram na posse de todas as trincheiras”.
A vida cara Em Agosto, somam-se já 50.000 homens em França. Até ao fim do conflito, em novembro de 1918, viriam a morrer e desaparecer mais de 2000. No país, os problemas iam-se multiplicando, com reclamações pelo aumento do custo e racionamento da eletricidade e do gás e o aumento dos preços, que leva a certa altura “O Século” a criar uma rubrica chamada “A vida cara” e a promover uma sopa dos pobres em Lisboa, com donativos de leitores.
Começaram em março a distribuir 500 litros de sopa, o suficiente para 1500 pratos, pela qual cobravam dois centavos o litro, um valor simbólico tendo em conta o custo da mercearia. Segundo o diário, antes da guerra, em 1914, o arroz custava em Lisboa 12 centavos. A meados de 1917, o preço era de 32. A massa tinha encarecido de 20 centavos para 60, o bacalhau também de pouco mais de 20 centavos para 80, o feijão de 7 para 12, o sabão de 14 para 34. “Temos pois um aumento exato de 110 centavos no custo de vida, isto sem incluirmos vestuário, calçado, etc, cujos preços teem subido também extraordinariamente. Ora, não tendo bases seguras para averiguarmos quando subiram os salários, pode-se, no entanto, afirmar, sem receio de mentir, que em nenhuma empresa, em nenhuma indústria, o aumento de salário, em relação a 2014, foi além de 30 centavos, o que quer dizer que, d’um modo geral, a económica doméstica do operário lisboeta está agravada com um encargo de 80 centavos. É em demasia grave.” No final do ano, a sopa dos pobres d’”O Século” já servia mil litros diários. Na altura, o salário médio diário nas zonas rurais era de 60 centavos, sendo um pouco mais alto entre os operários. O “Século” custava um centavo, 10 réis na moeda antiga.
Para contrariar a alta dos preços, o governo começa a exigir, por decreto, valores mais baixos, o que vai aumentando o clima de insatisfação entre comerciantes e empresários, que uns alegam que estão mais sobrecarregados pelo preço da produção, outros que simplesmente querem continuar a faturar. A dualidade é notória nas páginas de publicidade, onde continuam a dominar os anúncios de grandes armazéns como os do Chiado – na altura a maior empresa do país – ou os Grandella, com tecidos, peles e roupas para todas as estações, muitas vezes em saldo.
A 12 de agosto, antes de começar um período de greves, da construção civil aos telégrafos, Lisboa ainda tem margem para uma mega empreitada: começa a ser construída a estátua do Marquês do Pombal, na rotunda que viria a manter o seu nome até aos dias de hoje.
“O Monumento ao grande estadista”, titula “O Século”, que dá uma no cravo e outra na ferradura. “Realizou-se hontem, com o maior brilhantismo e solenidade, a inauguração dos trabalhos para a construção do majestoso monumento consagrado à memória do grande estadista Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e marquez de Pombal. A linda Rotunda da Avenida da Liberdade, até onde as intermináveis obras de repavimento da rua não chegaram ainda, apesar do seu estado miserável de empedramento, apresentava um aspeto encantador e pitoresco. A representação popular foi brilhantíssima, a despeito da hora matutina marcada para a realização da cerimónia”.
A dívida a crescer O clima nacional começaria a mudar. Na segunda metade do ano, o governo apresenta as despesas de guerra: 10 mil contos mensais, 6.000 em Franca, 2.500 em África e o restante no país. Uma dívida de guerra acumulada de 110 mil contos – segundo o anuário estatístico de 1917, as despesas de guerra neste ano somaram 75 mil contos. Antes da entrada no conflito, assinala o diário, a sobrecarga já era grande: 803 mil contos, o que dava por habitante uma média de 135 escudos. Em Lisboa, cresce a preocupação com a febre tifóide e a tuberculose. “A carestia de vida, obrigando forçosamente a uma restrição alimentar, indubitavelmente que há-de influir no depauperamento do organismo, o qual mais comummente se manifesta com a tuberculose, que sendo já entre nós desenvolvidíssima, ha de certamente desenvolver-se mais ainda, pois o povo portuguez que nunca se alimentou convenientemente, passa atualmente fome”, vaticina em outubro Salazar de Sousa, responsável pelo “pelouro da limpeza” na capital.
O dia 13 de outubro, data da última aparição em Fátima e do milagre do sol, preanunciado pelos pastorinhos, motiva já uma nota de expectativa na primeira página d’”O Século”: “O que ocorrerá hoje em Fátima? Sabel-o-hemos em breve. Pessoas piedosas esperam que a virgem Maria as esclareça sobre o fim da guerra e leve a sua bondade ao extremo de lhes dizer quando se firma a paz. O clero local, bem como o das redondezas, guarda, na aparência, uma prudente reserva sobre o que se está passando”. Mas outro destaque ia para uma crónica do deputado do partido progressista e cronista do jornal Augusto de Castro. “Não basta que Portugal se revele gloriosamente nos campos de batalha (...) a coragem cívica pertence àqueles que ficam e que teem, como primacial dever, ser dignos dos seus irmãos que morrem combatendo. Um Portugal heroe nas trincheiras e às portas do Atlântico um Portugal desordeiro, maldizente, atrabiliário, ignorante e desconfiado dos seus próprios destinos, desdenhoso da sua força, exgotando, no rancor e no pessimismo, todo o seu carácter e o seu sentimento, não fazem, na realidade, sentido”, escrevia. “É necessário acabar com esta anomalia inexplicável – e arrancar da alma portuguesa essa flor doentia e venenosa do pessimismo e desalento”, escreve de Paris.
Sem solução à vista do conflito externo, em dezembro o golpe de Estado comandado por Sidónio Pais derruba o governo de Afonso Costa e declara, depois de dois dias de confrontos violentos em Lisboa, a vitória da República contra a Demagogia.
O professor de matemática e ministro nos primeiros governos da República, que viria a ser alcunhado de “messias lusitano”, seria assassinado um ano mais tarde, mas ainda em 1917 institui um regime presidencialista no país, que os historiadores em Portugal têm apontado ser percursor do Estado Novo.
A 2 de agosto de 1917, “O Século” já tinha notado que havia condições para uma figura do género, face ao desencanto com a volatibilidade política. “Temos politicado de mais. É tempo de olharmos pelas coisas úteis, se queremos honrar a memória dos que já foram mortos pela honra da pátria”, escrevia o jornal, lembrando que ao apresentar as despesas de guerra, o governo assumia que o país não tinha receitas e tinha de dinamizar a economia e melhorar as condições de trabalho, mas era preciso agir. Aumentar a indústria, aproveitar melhor a floresta, problemas e ameaças que ao longo das décadas se foram mantendo atuais. “Tornemos este Portugal mesquinho, empobrecido e atrasado, numa nação progressiva e próspera. E tudo isso, que parece muito, e que por uma desgraçada perversão herdada, tantos fazem depender ainda hoje do aparecimento de um homem, espécie de messias maravilhoso, tem de ser – e será, se o quisermos – obra de todos nós, obra relativamente fácil, se se produzir a desejada união de todos os bons esforços e lhe não faltar a direção e auxílio dos poderes públicos.” A história seguiu por outros caminhos.
Na primeira página deste dia, os temas eram os mesmos das semanas anteriores. Portugal estava oficialmente entre as nações “beligerantes” do conflito europeu desde março do ano anterior, depois da declaração de guerra da Alemanha em março de 1916.
A economia nacional, demasiado dependente das importações numa altura em que escasseavam as formas de fazer chegar ao país alimentos e matérias primas, mostrava a sua fraqueza e a falta de rumo tornava-se evidente. “Precisamos de convencer-nos de que estamos em guerra; que nações comercialmente muito mais poderosas do que a nossa já puzeram de parte, há muito, comodidades que nós teimamos em conservar”, lia-se no editorial d’ “O Século” desse dia em que três crianças viram Nossa Senhora aparecer, brilhando, na Cova da Iria. “Que na Inglaterra se come pão feito de trigo, aveia e centeio, 12 horas depois de cosido e que o consumo é restrito, enquanto em Portugal se torce o nariz quando ele não é branco e fresco”, continuava o jornal. “Que em França, desde o dia 10 do corrente, não haverá mais confeitarias e pastelarias e que nós, pelo contrário, temos cada vez maior abundância de bolos e pastéis – desde as mercearias e leitarias, às sobremesas dos restaurantes ainda os mais modestos”. O problema era o custo das mercadorias e o preço de tudo, cada vez mais alto, em particular em Lisboa. “Estamos em guerra! Eis o grito que devíamos, a cada hora, fazer ouvir (...) Compremos o menos que pudermos ao estrangeiro. Não temos ouro, nem d’onde ele nos venha! O dever é, portanto, gastar menos.”
Para traçar um retrato do Portugal de há 100 anos, o i consultou o arquivo do jornal e o anuário estatístico de 1917, cedido pelo Instituto Nacional de Estatística . O país tinha 5,9 milhões de habitantes, mas a população estava a crescer a velocidade de cruzeiro – neste ano, o saldo natural (a diferença entre nascimentos e mortes que hoje é negativa) seria de 55 mil habitantes. Mesmo com os perdidos em combate. Na população, porém, apesar dos esforços da Primeira República para o reforço da instrução primária, reinava o analfabetismo e a pobreza. Mais de 70% dos “varões” e das “ fêmeas”, como catalogava na altura os dados da Direção-Geral de Estatísticas, não sabia ler nem escrever, como era o caso dos pastorinhos.
O ano, o terceiro da primeira grande guerra, começara nas sombras o conflito, ainda assim com algum optimismo. “O ano de 1916 foi, incontestavelmente, muito melhor para os exércitos da Entente [a aliança militar entre Reino Unido, França e Império Russo contra a Alemanha]. (...) O inimigo já deu em Verdun indícios de quebramento sintomático, rendendo-se por milhares às tropas do general Mangin”, contava “O Século” de 1 de janeiro de 1917. A Áustria tinha perdido 800 mil homens, a Alemanha mais de um milhão. Portugal estava prestes a assumir um papel ativo como aliado (honrando os compromissos de longos séculos de aliança com Inglaterra, justificaria o governo) e a mandar o primeiro contingente para a frente de batalha em França, depois de até então só estar mobilizado na defesa das colónias em África.
“Coragem não falta” O embarque começa ainda em janeiro e continuará nos meses seguintes. Os elogios aos soldados portugueses não tardam, assim como os relatos do conflito. Logo em fevereiro, o diário dá conta de um deles: “Um oficial do nosso exército há pouco chegado a Franca escreve a um parente. ‘Recebi o seu postal, o que muito agradeço, e que por singular acaso foi a primeira correspondência que recebi do nosso Portugal. Agora já lhe posso dizer uma coisa que lhe deve ser agradável, estive na front dez dias e lá experimentei os canhões aliados, tendo feito algumas centenas de tiros contra os boches. Cheguei à 1.ª fila das trincheiras ou seja, a 80 metros d’eles. De resto, nada mais posso dizer-lhe, a não ser que coragem não falta.”
O jornal vai dando conta diariamente dos elogios à organização e “perguntas inteligentes” dos oficiais do Corpo Expedicionário Português, à medida que começam também a ser publicadas caixas com o “rol de honra”, das baixas em França. Começam as manifestações de apoio populares, dos anúncios por madrinhas de guerra a campanhas locais, hoje difíceis de imaginar. “Acompanhados por dois diretores das escolas de S. Nicolau, teem os alunos das ditas escolas percorrido os escritórios das casas comerciais daquela freguesia, pedindo donativos para os cigarros dos nossos soldados que vão para os campos da batalha, tendo sido muito bem recebidos, atendendo ao fim simpático a que é destinado o produto. Até ontem já tinham recebido donativos na importância de 60$50.”
Em julho, uma nota de primeira página fala da impressão causada pelos portugueses aos estrangeiros e apresenta a sua alcunha. “O ‘Temps’ e outros jornais continuam a ocupar-se dos portugueses nos mais simpáticos termos, afirmando que eles fazem magnífica figura e acentuando que o comunicado britânico prestou homenagem à sua bravura e às grandes qualidades do povo aliado. Os ‘tommies’ puseram ao soldado português a alcunha de António, cuja abreviatura (Tony) se harmoniza com tommy. Os ‘Antónios’ – dizem os jornaes – são ardosos e aguentam com valentia o choque do inimigo, no sério raid de trincheiras por este efetuado, merecendo por isso, os cumprimentos do comandante em chefe britânico”.
De regresso da primeira visita à frente de batalha, Norton de Matos, o ministro de guerra do governo liderado por Afonso Costa, nota o mesmo. “Percorri toda a frente portuguesa. Estive nas nossas trincheiras, na primeira linha, a 150 metros dos alemães. Vi as devastações dos ataques inimigos. Constatei o admirável moral das nossas tropas, que estão conquistando – é preciso dizê-lo – a admiração e o respeito de todos os nossos aliados. Houve até este momento cinco raids alemães sobre a nossa frente, ataques que foram todos corajosamente repelidos. O mais violento desses ataques, que durou oito horas, foi na tarde de 12 e noite de 13 de junho, a noite de Santo António. Várias granadas de gazes asfixiantes foram lançadas, tendo nós tido cento e tantos soldados atingidos pela temível intoxicação e postos fora de combate. Os esforços inimigos ficaram, porém, malogrados inteiramente. As nossas tropas, que deram altas provas de disciplina e heroísmo, ficaram na posse de todas as trincheiras”.
A vida cara Em Agosto, somam-se já 50.000 homens em França. Até ao fim do conflito, em novembro de 1918, viriam a morrer e desaparecer mais de 2000. No país, os problemas iam-se multiplicando, com reclamações pelo aumento do custo e racionamento da eletricidade e do gás e o aumento dos preços, que leva a certa altura “O Século” a criar uma rubrica chamada “A vida cara” e a promover uma sopa dos pobres em Lisboa, com donativos de leitores.
Começaram em março a distribuir 500 litros de sopa, o suficiente para 1500 pratos, pela qual cobravam dois centavos o litro, um valor simbólico tendo em conta o custo da mercearia. Segundo o diário, antes da guerra, em 1914, o arroz custava em Lisboa 12 centavos. A meados de 1917, o preço era de 32. A massa tinha encarecido de 20 centavos para 60, o bacalhau também de pouco mais de 20 centavos para 80, o feijão de 7 para 12, o sabão de 14 para 34. “Temos pois um aumento exato de 110 centavos no custo de vida, isto sem incluirmos vestuário, calçado, etc, cujos preços teem subido também extraordinariamente. Ora, não tendo bases seguras para averiguarmos quando subiram os salários, pode-se, no entanto, afirmar, sem receio de mentir, que em nenhuma empresa, em nenhuma indústria, o aumento de salário, em relação a 2014, foi além de 30 centavos, o que quer dizer que, d’um modo geral, a económica doméstica do operário lisboeta está agravada com um encargo de 80 centavos. É em demasia grave.” No final do ano, a sopa dos pobres d’”O Século” já servia mil litros diários. Na altura, o salário médio diário nas zonas rurais era de 60 centavos, sendo um pouco mais alto entre os operários. O “Século” custava um centavo, 10 réis na moeda antiga.
Para contrariar a alta dos preços, o governo começa a exigir, por decreto, valores mais baixos, o que vai aumentando o clima de insatisfação entre comerciantes e empresários, que uns alegam que estão mais sobrecarregados pelo preço da produção, outros que simplesmente querem continuar a faturar. A dualidade é notória nas páginas de publicidade, onde continuam a dominar os anúncios de grandes armazéns como os do Chiado – na altura a maior empresa do país – ou os Grandella, com tecidos, peles e roupas para todas as estações, muitas vezes em saldo.
A 12 de agosto, antes de começar um período de greves, da construção civil aos telégrafos, Lisboa ainda tem margem para uma mega empreitada: começa a ser construída a estátua do Marquês do Pombal, na rotunda que viria a manter o seu nome até aos dias de hoje.
“O Monumento ao grande estadista”, titula “O Século”, que dá uma no cravo e outra na ferradura. “Realizou-se hontem, com o maior brilhantismo e solenidade, a inauguração dos trabalhos para a construção do majestoso monumento consagrado à memória do grande estadista Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e marquez de Pombal. A linda Rotunda da Avenida da Liberdade, até onde as intermináveis obras de repavimento da rua não chegaram ainda, apesar do seu estado miserável de empedramento, apresentava um aspeto encantador e pitoresco. A representação popular foi brilhantíssima, a despeito da hora matutina marcada para a realização da cerimónia”.
A dívida a crescer O clima nacional começaria a mudar. Na segunda metade do ano, o governo apresenta as despesas de guerra: 10 mil contos mensais, 6.000 em Franca, 2.500 em África e o restante no país. Uma dívida de guerra acumulada de 110 mil contos – segundo o anuário estatístico de 1917, as despesas de guerra neste ano somaram 75 mil contos. Antes da entrada no conflito, assinala o diário, a sobrecarga já era grande: 803 mil contos, o que dava por habitante uma média de 135 escudos. Em Lisboa, cresce a preocupação com a febre tifóide e a tuberculose. “A carestia de vida, obrigando forçosamente a uma restrição alimentar, indubitavelmente que há-de influir no depauperamento do organismo, o qual mais comummente se manifesta com a tuberculose, que sendo já entre nós desenvolvidíssima, ha de certamente desenvolver-se mais ainda, pois o povo portuguez que nunca se alimentou convenientemente, passa atualmente fome”, vaticina em outubro Salazar de Sousa, responsável pelo “pelouro da limpeza” na capital.
O dia 13 de outubro, data da última aparição em Fátima e do milagre do sol, preanunciado pelos pastorinhos, motiva já uma nota de expectativa na primeira página d’”O Século”: “O que ocorrerá hoje em Fátima? Sabel-o-hemos em breve. Pessoas piedosas esperam que a virgem Maria as esclareça sobre o fim da guerra e leve a sua bondade ao extremo de lhes dizer quando se firma a paz. O clero local, bem como o das redondezas, guarda, na aparência, uma prudente reserva sobre o que se está passando”. Mas outro destaque ia para uma crónica do deputado do partido progressista e cronista do jornal Augusto de Castro. “Não basta que Portugal se revele gloriosamente nos campos de batalha (...) a coragem cívica pertence àqueles que ficam e que teem, como primacial dever, ser dignos dos seus irmãos que morrem combatendo. Um Portugal heroe nas trincheiras e às portas do Atlântico um Portugal desordeiro, maldizente, atrabiliário, ignorante e desconfiado dos seus próprios destinos, desdenhoso da sua força, exgotando, no rancor e no pessimismo, todo o seu carácter e o seu sentimento, não fazem, na realidade, sentido”, escrevia. “É necessário acabar com esta anomalia inexplicável – e arrancar da alma portuguesa essa flor doentia e venenosa do pessimismo e desalento”, escreve de Paris.
Sem solução à vista do conflito externo, em dezembro o golpe de Estado comandado por Sidónio Pais derruba o governo de Afonso Costa e declara, depois de dois dias de confrontos violentos em Lisboa, a vitória da República contra a Demagogia.
O professor de matemática e ministro nos primeiros governos da República, que viria a ser alcunhado de “messias lusitano”, seria assassinado um ano mais tarde, mas ainda em 1917 institui um regime presidencialista no país, que os historiadores em Portugal têm apontado ser percursor do Estado Novo.
A 2 de agosto de 1917, “O Século” já tinha notado que havia condições para uma figura do género, face ao desencanto com a volatibilidade política. “Temos politicado de mais. É tempo de olharmos pelas coisas úteis, se queremos honrar a memória dos que já foram mortos pela honra da pátria”, escrevia o jornal, lembrando que ao apresentar as despesas de guerra, o governo assumia que o país não tinha receitas e tinha de dinamizar a economia e melhorar as condições de trabalho, mas era preciso agir. Aumentar a indústria, aproveitar melhor a floresta, problemas e ameaças que ao longo das décadas se foram mantendo atuais. “Tornemos este Portugal mesquinho, empobrecido e atrasado, numa nação progressiva e próspera. E tudo isso, que parece muito, e que por uma desgraçada perversão herdada, tantos fazem depender ainda hoje do aparecimento de um homem, espécie de messias maravilhoso, tem de ser – e será, se o quisermos – obra de todos nós, obra relativamente fácil, se se produzir a desejada união de todos os bons esforços e lhe não faltar a direção e auxílio dos poderes públicos.” A história seguiu por outros caminhos.
Ab alio expectes, quod alteri feceri
fonte;Jornal i onlinehttp://forum.antinovaordemmundial.com/Topico-o-portugal-das-apari%C3%A7%C3%B5es-um-pa%C3%ADs-mesquinho-empobrecido-e-atrasado#ixzz4gX8N6JP6
Geen opmerkings nie:
Plaas 'n opmerking