CHINA Mao Tsé-Tung: “A revolução não é uma festa” em 2016

Mao Tsé-Tung morreu há quarenta anos. 

Maria João Marques recorda a vida e o legado do "grande timoneiro" e explica porque os chineses pouco choraram a sua morte.

Quando na manhã de 9 de setembro de 1976, há quarenta anos, os autofalantes espalhados pelas ruas das cidades chinesas informaram, “com a mais profunda tristeza, que o Camarada Mao Tsé-Tung, o nosso estimado e amado grande líder”[i] morrera durante a madrugada, dias depois do seu terceiro ataque cardíaco em quatro meses, os chineses não ficaram surpreendidos. Durante os milénios da história chinesa os fenómenos naturais haviam sido sempre obedientes a informar as populações sobre a manutenção, ou não, do mandato do Céu pelos governantes. Inundações, terramotos e colheitas destruídas? Eram sinal inequívoco de que a dinastia perdera o favor do Céu e que as populações, seguindo os ensinamentos de Mêncio, poderiam substituir os governantes que tinham perdido a virtude.
22/09/2016



Ora a 26 de julho daquele ano, um terramoto violento destruíra a cidade de Tangshan, perto (segundo a perceção das distâncias na China) de Pequim, onde também se sentira o abalo. Evidentemente a informação dada à população foi escassa – sobretudo sobre o número de mortos (estimados entre quinhentos e setecentos mil), sobre a incompetência do Exército de Libertação Popular a procurar sobreviventes entre os escombros e sobre as valas comuns onde se enterraram os cadáveres cobertos de lixívia – mas a notícia foi passando, bem como a claríssima mensagem da natureza: a morte de algum poderoso aproximava-se.
Pelo que aquando do anúncio da morte de Mao, o pesar oficial foi registado e o luto público foi estritamente observado. No entanto, para a população chinesa, bem como para a hierarquia do Partido Comunista Chinês, a reação foi mais de alívio do que de dor. A notícia chegava ao fim dos dez terríveis anos da Revolução Cultural – que proporcionou os animadores números de uns estimados (números de Andrew Walder e Yang Su) um milhão e meio de mortos e cem milhões de chineses perseguidos e punidos. A China estava exausta. (N.do E.: Segundo o cientista político R. J. Rummel, especialista no cálculo dos "democídios", a vítimas de Mao chegam a 77 milhões de cidadão chineses.) 
A ausência de tristeza e de choros com a morte de Mao foi mais sintomática por ter ocorrido meses depois da morte do primeiro-ministro Zhou Enlai, a 8 de janeiro de 1976. Zhou era tido pela generalidade dos chineses como a imagem da moderação – por oposição a Mao e aos radicais a quem este, a espaços, dava rédea solta para atormentar as populações – se não mesmo do humanismo no meio da loucura da Revolução Cultural. Quando morreu, maciças manifestações foram espontaneamente organizadas pelos chineses (e meticulosamente reprimidas pelas autoridades) em cidades do norte e do sul da China, do litoral e do interior. Coroas de flores acumulavam-se nas praças das cidades, pessoas choravam, e houve até o desafio ostensivo às autoridades com a ocupação da praça Tian’anmen a 4 e 5 de abril, por altura do Festival Qingming (em que tradicionalmente se prestava honras aos mortos), com direito a carga militar sobre os manifestantes.
Desafiando a vigilância e delação comuns nos tempos maoistas, as reações populares eram de fúria ostensiva perante os ataques póstumos a Zhou, que os jornais e a rádio oficiais proferiam (encomendados pelo grupo de radicais da mulher de Mao, Jiang Qing). O apoio a Deng Xiaoping, visto como o sucessor do primeiro-ministro falecido e opositor dos radicais, era publicamente declarado. Os chineses ousavam pedir para a governação do país alguém que, à época, incorria no desfavor de Mao exigiam a velha e confiável burocracia do Partido Comunista Chinês (PCC) a governar, em vez dos carrascos radicais que só provocavam caos e destruição.
Com a criação da República Popular da China em 1949, a administração do país coube, claro, à estrutura partidária do PCC. Sem surpresa, depois de uma guerra, o partido via como prioridade a estabilização do país, o crescimento da economia e a melhoria da vida das populações. Ora, segundo Mao, estas eram as prioridades erradas. Os objetivos da política não podiam ser estes pormenores comezinhos de uns yuan a mais ou a menos no rendimento de cada família, ou a escolaridade das crianças (de resto Mao via como muito mais benéfico o fervor ideológico do que o mérito académico), ou a existência de transportes entre as vastas distâncias chinesas. Nada disso: os fins últimos da política eram a luta de classes e o aprofundamento da coletivização. Mesmo que fossem obtidos à custa dos objetivos anteriores e do bem-estar das populações – ou, até, à custa da vida dos chineses.
Por isso, Mao, que acreditava na desordem, conviveu tão bem com a violência e a crueldade — explicitamente pedidas por Mao aos jovens e aos “operários rebeldes” — dos primeiros anos da Revolução Cultural. A revolução, lembrava uma das suas citações icónicas, não é uma festa.
Perante a calamidade dos quarenta e cinco milhões de mortos do Grande Salto em Frente (1958-62) – com as grandes comunas agrícolas onde tudo (como dizia um secretário do PCC em Macheng, até os seres humanos) era coletivo – o grande timoneiro manteve a opinião de que as suas políticas agrícolas eram as corretas. Em 1959, já a população rural chinesa morria à fome, Mao proferia a sua famosa frase “a situação em geral é excelente”.
Esta visão radical consternava até o mais empedernido dos marxistas. Quando discursou em Moscou perante os líderes comunistas mundiais, em novembro de 1957, Mao deixou-os em estado de choque com a sua conversa sobre uma possível guerra mundial iminente: alegremente, sem evidenciar problemas com tais estatísticas de mortandade, referiu que metade da população mundial poderia morrer, mas a metade sobrevivente (aleluia!) viveria sob o comunismo.
Pouco acompanhado nesta disposição para tais sacrifícios, Mao desconfiava da burocracia política do PCC. Supunha o partido que chefiava, constantemente à beira de ser tomado por direitistas e saudosistas do capitalismo, prenhe de espiões imperialistas ou do malvado Chiang Kai-shek. Desprezava as cautelas dos seus colegas do PCC face às consequências económicas das reformas comunistas e enfurecia-se com as reticências sobre uma maior coletivização da economia. Referia-se-lhes como “mulheres de pés enfaixados”, comparando a falta de entusiasmo dos outros dirigentes do PCC aos passos lentos e hesitantes das senhoras a quem os pés haviam sido enfaixados desde a infância – hábito bárbaro que o regime comunista, e muito bem, proibiu. Torcia o nariz à forma como a aristocracia partidária usava o seu poder para dele retirar benefícios para si e para a sua família. A solução maoista típica para lidar com todas estas aleivosias era uma ronda de purgas no partido, em ritmo imparável a partir da segunda metade da década de 1950.
Chegar ao poder
Que Mao tenha sido bem-sucedido a torturar a burocracia do PCC era um estandarte do poder que acumulou desde os dias em que, durante a Longa Marcha, se tornou líder do Partido Comunista. Inicialmente, Mao não foi uma escolha evidente. Nascido a 26 de dezembro de 1893 em Shaoshan, no Hunan rural, segundo a sucinta descrição que faz Jonathan Spence, que o biografou, “as suas origens eram comuns, a sua educação episódica, os seus talentos nada excepcionais; no entanto, ele possuía uma energia infindável e uma implacável autoconfiança”.
Mao não era o comunista intelectualmente mais esclarecido e admirado, nem possuía o pedigree que as ligações à União Soviética ofereciam a outros. Mas percebia que lirismos da estirpe “as palavras são mais poderosas que as armas” eram conversa de fracos: Mao era um militar reconhecido e lesto a usar as armas contra os inimigos, incluindo os outros líderes de fação no PCC. Era propenso à ação; já nas primeiras reuniões do PCC um outro camarada notava que Mao falava pouco e só para o fim das reuniões, altura em que fazia um resumo do que se passara e sugeria soluções concretas. A sua resistência, energia e iniciativa proporcionaram-lhe que fosse, simultaneamente, um comandante militar de renome, um dos escassos participantes no primeiro congresso do PCC em Shanghai em julho de 1921 (com todos os benefícios que dá a antiguidade), e um sobrevivente da Longa Marcha – essa demorada retirada do exército comunista do soviete de Jinggangshan, na provícia sulista do Jiangxi, para a zona de Yan’an, no noroeste da China, nos anos de 1934 e 1935. Manter-se vivo e ser feroz foram os maiores trunfos de Mao para liderar o PCC.
Quando o Exército Vermelho estabeleceu o soviete de Yan’an, Mao, líder dos insurgentes, vivia numa caverna nas montanhas de loesse com He Zhizhen, a sua segunda mulher (ou terceira, se considerarmos o seu breve casamento durante a adolescência, arranjado pelos seus pais e supostamente não consumado). O casal juntara-se quando viviam ambos nas Montanhas Jinggang, enquanto a primeira mulher de Mao, Yang Kaihui, permanecia na província de Hunan, numa zona de guerra com os nacionalistas.
Debate-se se Mao tinha ou não consciência do perigo que a sua mulher e três rebentos corriam e se teve oportunidade para os resgatar para uma zona comunista segura. Em todo o caso, Mao dava sinais em Jinggangshan de não ter já memória da sua vida familiar no Hunan e por lá os deixou. Sem saber da relação de Mao com He, Yang Kaihui foi capturada em 1930 pelo exército nacionalista e executada pela sua ligação com Mao Zedong. Dois dos filhos de Yang e Mao viveram da caridade alheia durante seis anos, sem destino conhecido, sendo finalmente localizados e enviados para a União Soviética; o filho mais novo morreu.
E aqui chego a uma característica que causa perplexidade na vida de Mao: a quantidade de filhos que (literalmente) perdeu. Ao lermos a biografia escrita por Jonathan Spence, a sucessão de filhos perdidos em poucas páginas é de tal ordem que às tantas estamos a comentar “olha, perdeu mais um”. Além das deambulações dos filhos com Yang, e dos filhos que morreram com doenças na infância, a primeira filha com He Zhizhen foi entregue a um casal no Fujian e aparentemente não sobreviveu. O segundo filho ficou no Jiangxi quando os pais iniciaram a retirada para o noroeste, com um irmão de Mao, e mais nada se soube da criança. Uma segunda filha, nascida durante a Longa Marcha, foi deixada com uma família de camponeses e nunca reencontrada. É certo: as condições de uma retirada militar na China dos anos 1930 não são semelhantes às das maternidades europeias onde as crianças adquirem uma pulseira com o nome dos pais mal nascem. Em todo o caso, não há registo de tantos filhos mortos e perdidos terem provocado qualquer dor no seu pai, o que é merecedor de ser assinalado.
As purgas
Regressemos a Yan’an. Mao, líder do PCC e da área controlada pelo Exército Vermelho, começou cedo a revelar alguns tiques da sua liderança a que daria rédea solta quando se tornou também presidente da República Popular da China (RPC). A primeira purga aos rivais do PCC, à moda estalinista, ocorreu com a “campanha de retificação” de 1942 a 1944. O anti-intelectualismo também deu sinais já nestes tempos. Porventura ressentido por ter sido desprezado pelos intelectuais de Pequim, no pequeno período em que lá trabalhara como bibliotecário na universidade, em 1919, ou escarnecido pelos colegas de escola em Changsha, no Hunan, pelas suas vestes de campónio, Mao retribuiu todas estas desconsiderações aos letrados que gravitavam em redor do PCC. Entre outros traços de personalidade, Mao era vingativo e não esquecia uma ofensa.
Em 1942, Mao afirmava que o saber dos operários e dos camponeses era maior que o dos intelectuais. Nas famosas Conversas de Yan’an decidiu explicar o que seria a sua política cultural, escolhendo para tal uma audiência de soldados maioritariamente iletrados. Afirmou que os intelectuais eram “espiritualmente sujos”[ii] e desligados das massas, a quem deviam servir.
Saltando no tempo, os intelectuais foram particularmente massacrados na Campanha das Cem Flores (1956) e na Revolução Cultural (1966-76). Para evitar os malefícios intelectuais, uma das primeiras medidas da dita Revolução Cultural foi a suspensão das aulas em todos os níveis de ensino – o saber livresco fazia mal às criancinhas. Os exames para entrar na universidade foram outro grande alvo desta última década da vida de Mao: a maior acusação feita pela Gangue dos Quatro a Deng Xiaoping (a caminho da sua terceira purga) foi a reintrodução dos exames em 1973, por pretender ter novamente nas universidades os melhores alunos em vez dos mais excitados politicamente.
Ligado a este anti-intelectualismo estava o deliberado uso de hábitos dos camponeses e a ostensiva falta de maneiras. Consistente com a caverna onde vivia em Yan’an, tornou-se comum, durante as reuniões políticas, Mao abrir a roupa para caçar piolhos no seu corpo ou baixar as calças para se deitar e refrescar. Nos últimos anos de vida, recusava-se a tomar banho e a escovar os dentes. (Jung Chang, no seu livro-barra-manifesto antimaoista Mao, a História Desconhecida, exibe uma fotografia da audiência de Mao de dentes negros ao então primeiro-ministro paquistanês Zulfikar Ali Bhutto.)
Também em Yan’an se iniciou o culto de Mao. A primeira imagem de Mao numa posição proeminente apareceu no jornal local, o Jiefang Ribao (Diário da Libertação), em 1937. Em 1943, o culto já estava alinhavado: o departamento de propaganda reescrevia a história revolucionária do PCC para colocar Mao no centro de tudo.
Mais tarde, durante (outra vez) a Revolução Cultural, o culto de Mao seria levado a extremos risíveis. Desde umas mangas (sim, a fruta) que andaram em peregrinação pela China por terem sido tocadas por Mao quando um diplomata paquistanês lhas ofereceu, até às qualidades salvíficas do Pensamento de Mao Zedong, cujo estudo produziu mesmo milagres de cura de casos de cancro e de surdez. O plástico era desviado da produção de sapatos para a produção das capas do Livrinho Encarnado e a produção de papel era alocada aos mesmos livrinhos, deixando de haver papel disponível para quaisquer outros fins, incluindo manuais escolares (mesmo quando os jovens impressionáveis foram reenviados para as aulas).
As mulheres
Em Yan’an houve outra aquisição importante na vida de Mao Zedong: a sua terceira (ou quarta) mulher, Jiang Qing. Muitos altos dirigentes do PCC criticaram Mao por trocar a sólida revolucionária He Zhizhen, seis filhos depois, por uma atriz de Shanghai de vinte e quatro anos. No entanto Mao não foi original nesta decisão. O soviete tornara-se o destino de muitos (e muitas) jovens citadinos convertidos ao comunismo. Perante as jovens de pedigree urbano (algo socialmente valorizado na China), mais bonitas e mais novas do que as suas mulheres camponesas, os cadres do PCC maciçamente se divorciaram e casaram com as recém-chegadas. Curiosamente, como o bom comunista não se deixa convencer por pormenores mundanos como a aparência física ou a conversa espirituosa das gentes das cidades, a justificação oficial para o novo casamento era o superior esclarecimento ideológico que estas raparigas citadinas possuíam e que faltava às mentes mais simples das suas primeiras mulheres.


E por falar em seres femininos. Apesar de Mao não costumar revelar respeito político por camaradas femininas, o recorde de Mao no que toca à condição feminina não foi terrível. Em Yan’an as leis de família, incluindo de divórcio, protegiam as mulheres e os filhos do casal. Depois de 1949, produziram-se leis proibindo o rapto e a venda de mulheres, os casamentos forçados e a violência doméstica. Duas famosas tiradas de Mao pretendiam mostrar que as mulheres não eram objetos de diversão masculina, mas pessoas capazes de participar inteiramente na construção do mundo socialista, em igualdade com os homens. Uma rezava: “As mulheres conseguem segurar metade do céu”. Outra: “As filhas da China não gostam de sedas e cetins, gostam de vestes de batalha”.
Sem fazer caso das suas citações feministas, o hedonismo sexual de Mao acentuou-se à medida que envelheceu. O seu médico, Li Zhisui, contou no seu livro testemunhal como lhe procuravam uma sucessão contínua de jovens com quem tinha sexo e a quem transmitia doenças venéreas (que recusava tratar, indiferente ao contágio, porque o próprio era assintomático). Estes hábitos originavam repulsa nos quadros do PCC mais ascetas, que se escandalizavam também por Mao manter várias casas luxuosas em diferentes locais da China, prontas para o receber. (O presidente não recusava para si os luxos que o enfureciam quando os vislumbrava nos seus colegas de partido.)
O imperador
Sintomaticamente, vários sinólogos têm discutido se Mao, nos últimos anos de vida, se tornou ou não um novo imperador. Certo é que Mao crescentemente admirava o primeiro imperador que unificou a China, Qin Shi Huangdi. Quando Nixon visitou Mao, em 1972, a propaganda apresentou o evento como uma reedição das visitas dos diplomatas dos países do antigo sistema tributário chinês que vinham fazer o kowtow e prestar vassalagem ao imperador-filho do Céu. Mas, como Jeff Wasserstrom escreveu no seu ensaio Mao Matters (e mais superficialmente aqui), há muitos Mao. Desde o mais apelativo Mao dos tempos da guerra civil, descrito em tons elegíacos pelo jornalista Edgar Snow em Red Star Over China – The Trise of the Red Army, até ao Mao tirânico e cruel dos últimos anos.
Muitos chineses viam Mao como deus, imperador, o único ser humano que nunca se havia enganado, a pessoa que as crianças deviam amar mais que às suas mães e aos seus pais. Em todo o caso, a centelha de espírito crítico e de reconhecimento das contradições resistiu, ainda e sempre, ao invasor das consciências. Fang Zhongmou, de 44 anos em 1970, desabafou um dia com a família: queria saber para que estava Mao a criar um culto de personalidade, ameaçou retirar das paredes de casa os posters de Mao e declarou que Liu Shaoqi (o sucessor de Mao no cargo cerimonial de presidente da RPC, purgado e deixado a morrer sem tratamento médico durante a Revolução Cultural) seria reabilitado (no que estava plena de razão). O marido e o filho, horrorizados com tal ataque ao Presidente, denunciaram Fang, que terminou executada. É a história ilustrativa de uma família chinesa, onde coexistiam a mais absoluta lealdade a Mao, de pai e filho, com a clarividência da mãe. Rae Yang, nas suas memórias Spider Eaters, conta como a chocou a perseguição a uma camponesa na província nortenha do Heilongjiang por um crime hediondo: enquanto costurava, e porque tinha as paredes de casa cobertas de posters do Presidente Mao, espetava as agulhas na cara do retratado quando não as estava a usar.
Também os escritos de Lin Liguo (filho do Marechal Lin Biao, sucessor oficial do Presidente) revelam uma visão funesta de Mao. Depois da morte da família Lin, enquanto fugia para a União Soviética, em setembro de 1971, foi revelada esta descrição de Mao por Lin Liguo: “Hoje, ele usa esta força para atacar aquela força amanhã usa aquela força para atacar esta força. Hoje usa palavras doces e conversa melosa para aqueles a quem enfeitiça, e amanhã manda-os para a morte por alguns crimes fabricados […] Olhando para trás, alguém que ele suportou inicialmente não terminou, no fim, com uma sentença de morte política? Há alguma força política com a qual ele tenha conseguido trabalhar do princípio ao fim? Os seus antigos secretários ou cometeram suicídio ou foram presos. Os seus poucos camaradas de armas ou conselheiros de confiança foram enviados para a prisão por ele… Ele é um paranóico e um sádico […] uma vez que te persegue, vai perseguir-te até ao fim e põe as culpas de todas as coisas más em cima dos outros”. [iii]
É difícil não supor que parte do PCC e da população chinesa partilhava esta opinião, desde logo por ser tão fiel decalque da real e cínica atuação política de Mao. Talvez por – nas zonas íntimas do cérebro que a vigilância opressiva maoista não conseguia perscrutar – haver esta perceção da duplicidade de Mao, os chineses tenham de forma tão natural aceite o caminho oposto ao maoismo, o das reformas económicas capitalistas de Deng Xiaoping. Como diz Anchee Min, autora agora expatriada nos Estados Unidos: “No meu tempo, metade da população do país foi enviada para os campos de trabalho ou para as zonas rurais. Pelo que sabemos o que não funciona. A nossa geração é uma geração desiludida, politicamente madura e muito prática”.
É uma doce ironia da história que a desilusão com o maoismo tenha permitido a emergência da China capitalista que Mao com tanto vigor e crueldade combateu. O partido que Mao desconfiava querer traí-lo aprovou em 1981 uma resolução reconhecendo os erros de Mao e frisando a sua inclinação (reprovável) pela decisão individual – em vez da coletiva, ao bom velho estilo comunista. Entretanto, a venda de memorabilia de Mao, uma nova imagem kitsch chinesa, é um negócio fulgurante. Agora temos um culto comercializado. E os académicos entretêm-se a discutir se Mao era mesmo um monstro.

FONTE;http://www.midiasemmascara.org/artigos/internacional/china/16725-2016-09-20-21-41-45.html
ESCRITO POR MARIA JOÃO MARQUES | 21 SETEMBRO 2016 

INTERNACIONAL - CHINA

Notas:

[i] Em Frank Dikötter (2016), The Cultural Revolution, A People’s History 1962-1976.

[ii] Em Timothy Cheek (2002), Mao Zedong and China’s Revolution, A Brief History with Documents.
[iii] Em Roderick Macfarquhar e Michael Schoenhals (2006), Mao´s Last Revolution.



Publicado no Observador.


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