O presidente João Goulart e Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul
Forças ocultas sussurraram nos ouvidos presidenciais do imprevisível Jânio Quadros que a sua renúncia, uma apelação golpista, acabaria fortalecendo suas posições no poder. Nem o povo nem o Congresso se iludiram quanto as suas intenções misteriosas e Jânio acabou entrando para a História como o pivô de uma das mais graves crises políticas que o Brasil já viveu. Da renúncia, em 25 de agosto de 1961, ao Golpe de 1º de abril de 1964, se instalou um clima politicamente convulso no país com a colisão entre os posicionamentos progressistas e a as forças conservadoras de sempre, sendo a “revolução” verde-oliva o resultado imediato mais grotesco e anti-democrático destes conflitos.
14/03/2012
O então Vice-Presidente João Goulart deveria legalmente assumir as chefias de Governo e Estado como legítimo Presidente da República, mas seu governo já teve um início incomum, pois, na tentativa de limitar as prerrogativas presidenciais, o Congresso Nacional realizou uma das grandes proezas históricas da irracionalidade política brasileira: desprezando que o país possuía uma Constituição e que os Poderes a ela deveriam seguir, foi imposto um regime parlamentarista improvisado que foi, pelo bem da legalidade, posteriormente derrubado pelo plebiscito de 6 de janeiro de 1963. Goulart, herdeiro político de Getúlio Vargas, buscou imprimir uma série de medidas que desagradaram as vontades dos setores conservadores e reacionários, cujos interesses geralmente nortearam as políticas governamentais. Além de impor o monopólio estatal para importação de petróleo e regulamentar o fluxo de remessa de lucros ao exterior por parte das multinacionais, Goulart buscou manter uma política internacional mais autônoma, o que poderia alarmar aqueles que tinham receios a respeito de suas supostas relações com o comunismo numa época na qual imperava o domínio da Guerra Fria sobre o alinhamento das “nações periféricas” entre os dois pólos antagonistas – EUA e URSS.
O país se agitou durante o Governo Jango. O processo de democratização acentuou a politização dos atos públicos que se espalharam pelas ruas das principais cidades brasileiras. Verificou-se o fortalecimento dos organismos de representação dos movimentos trabalhistas por meio da atuação de entidades como o Movimento Unificado dos Trabalhadores (MUT), o Pacto de Unidade e Ação (PUA), o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e das centrais que congregavam os trabalhadores rurais, cuja sindicalização somente foi regulamentada em junho de 1963. O movimento dos estudantes esteve igualmente ativo e solidário a qualquer causa que, mesmo romanticamente, tentasse servir como via de libertação para o Brasil – eram tempos em que a IV Internacional e seu viés trotskista seduziu jovens em nome da aventura revolucionária. Os temíveis comunistas voltaram a atormentar seus perseguidores e Cuba tornou-se uma espécie de “Paraíso na Terra”, um lugar onde se podia viver em liberdade do tenebroso capitalismo e experimentar a grandeza do socialismo.
Como agitação popular sempre foi encarada como sinônimo de perigo e subversão, então, os vigilantes senhores zelosos pela integridade de suas posições ameaçadas por este clima de mobilização que se instalou como uma praga no país, resolveram que alguma resistência ou coisa pior precisava ser executada com certa urgência. A tentativa de implodir a ascensão dos subversivos contou com apoio financeiro norte-americano através da Aliança para o Progresso e com o suporte o de endinheirados colaboradores nacionais que, através do Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD, distribuíram bastante capital para a cooptação de bases no movimento social e financiamento de campanhas políticas. Os conservadores passaram a articular também os seus próprios movimentos de massa com os apoios de grupos como a hedionda Sociedade em Defesa da Tradição, Família e Propriedade (a TFP) ou a grotesca Frente Patriótica Civil-Militar. O ápice deste ativismo de extrema-direita foi a realização da incrível “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.
Jango, o ícone-mor do colapso populista, buscou canalizar o furor dos movimentos sociais parar o seu lado, buscou encampar as suas Reformas de Base e nos seus últimos dias de governo participou do apoteótico comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, ocasião na qual fez questão de anunciar o lançamento de seu plano de reforma agrária: o Decreto de 13 de março de 1964, que declarava as terras que ladeavam as rodovias federais, ferrovias e terras que contaram com benefícios bancados pela União cumpririam sua função social, sendo então destinadas a uma distribuição entre os trabalhadores sem terras. Os progressistas, os “agitadores” e os sonhadores confiavam na idéia de que aquele clima de efervescência política inspirava um estado favorável à concretização de seus intentos. O eufórico Luiz Carlos Prestes chegou a afirmar, um mês antes do golpe, que os comunistas já estavam no poder. Nos instantes anteriores à queda de Jango, a CGT articulou uma greve geral no Brasil como forma de pressão contra os grupos que se opunham às reformas. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) declarou, em nota do 31 de março de 1964, dia em que os conspiradores e golpistas acertavam o assalto ao Poder, que os trabalhadores não podiam permitir que as reformas propostas por Jango fossem perturbadas por forças reacionárias.
Mas já não havia mais reformas a defender, pois já não havia mais Governo Jango. O “Hamlet dos Pampas” foi derrubado pelos conspiradores sem maiores alardes. Os golpistas devem ter cansado do espetáculo de radicalização ideológica, da farra dos agitadores e do otimismo dos comunistas. O sonho acabou.
Dizem que há três maneiras de lidar com os problemas: a maneira certa, a maneira errada e a maneira dos militares. A maneira militar de lidar com problemas políticos costuma ser isenta de parâmetros racionais ou valores democráticos. O negócio é simples: guerra é guerra, inimigo é inimigo e identificado o inimigo, proceda-se o ataque. Os bravos militares acorreram aos apelos patrióticos dos conspiradores civis (sendo muitos deles homens de execráveis comportamentos políticos, como Magalhães Pinto, Carlos Lacerda ou Adhemar de Barros, governadores dos três mais influentes Estados brasileiros – Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente). O Exército, como já havia notado Antonio Callado, era o efetivo e verdadeiro partido político brasileiro. Se os generais, que não são eleitos pelo povo, decidem não admitir um governo, seja ele de quem for, eles simplesmente decidem dar-lhe um fim. Já não haviam acolhido com boa vontade a posse de Jango, mas resolveram pagar para ver. A paciência bélica da caserna se esgotou e próprios militares decidiram tomar o controle do governo. Enjoaram dos civis.
Há quem esteja plenamente convicto de que no período imediatamente anterior ao Golpe Militar o Brasil viveu uma experiência ardentemente progressiva, um surto de inspiração revolucionária plenamente estabelecido. Mas esta convicção talvez não resista ao confronto com os fatos. Ocorre que radicalização dos movimentos sociais organizados, ao contrário de beneficiar o Governo Jango, acabou o desestabilizando e poucos de seus aliados possuíam uma apurada percepção de que o governo trilhava por um campo minado – não haviam captado os sinais oferecidos pelas tramas políticas que estiveram ligadas ao processo de imposição do parlamentarismo “anti-constitucional” como condição para a admissão de Jango como Presidente. A situação de Jango era insustentável e não havia um suporte firme o bastante para impor uma resistência ao golpe. O Governo Jango desmantelou-se como um castelo de cartas. As resistências ao funcionamento das Reformas de Base não seriam impostas apenas no plano retórico da discordância por declaração e a prova cabal da inconsistência de solidez dos progressistas foi a forma fácil como deixaram o poder, sem qualquer resistência ou apoio.
O dia em que o Brasil acordou com o anúncio de que o governo havia sido deposto por uma quartelada foi o nosso grande e inesquecível dia como uma legítima “República de Bananas”, identificação típica jocosamente atribuída à lastimável tradição latino-americana de apelo a golpes de Estado, prática que entre nós já foi bastante vulgarizada.
SEMEANDO A REVOLUÇÃO
Deu no New York Times, mais importante jornal dos EUA: “Os componentes de uma situação de revolução tornam-se cada vez mais visíveis na vastidão de um Nordeste brasileiro assolado pela pobreza e perseguido pela praga da seca”. Era final de outubro de 1960 quando o correspondente norte-americano Tad Szulc percorreu Pernambuco tomando notas da situação, entrevistando pessoas e colhendo dados a respeito de uma presumível “revolução” que pudesse estar em marcha no Nordeste. Sua investigação resultou em reportagens que foram publicadas no mais conhecido e influente jornal dos EUA e a repercussão destas matérias deixaram Washington em alerta – o governo estadunidense não queria ver uma nova revolução na América Latina, temia que uma nova e gigantesca Cuba acabasse por desmoralizar sua influência no continente.
As Ligas Camponesas que, segundo a matéria, eram “infiltradas por comunistas”, espalharam o temor de que uma mudança drástica nas relações de trabalho no campo viesse a ocorrer e que a perigosa e indesejável reforma agrária viesse a ser uma conquista inevitável. Pânico entre os proprietários de terras. Desespero entre os políticos conservadores, reacionários e prepostos do regime da grande propriedade rural. Enfim, o alarde era perfeitamente justificável.
Originalmente surgidas com a organização dos camponeses na Europa durante a Idade Média. No Brasil, as ligas camponesas são conhecidas como a associação de trabalhadores rurais que se iniciou no Engenho Galiléia, no Estado de Pernambuco, em 1955, a partir da reivindicação de caixões para os camponeses mortos. O temor dos grandes proprietários acabou por hostilizar o movimento que, junto ao advogado e político Francisco Julião, tornou-se um movimento de amplitude nacional pelos direitos à terra, em defesa da Reforma Agrária.
As mobilizações no campo efetivamente se avolumaram desde a crescente ação das Ligas Camponesas a partir da desapropriação do Engenho Galiléia, no município pernambucano de Vitória de Santo Antão em 1955. Daí em diante, os conflitos entre os trabalhadores rurais e os grandes proprietários recrudesceram e o estado de violência passou a imperar como rotina ainda mais evidente no meio rural nordestino (o movimento irradiou e as Ligas chegaram a atuar por praticamente toda a região). A radicalização reivindicatória e política do movimento camponês passou a enfrentar uma radicalização acentuada também da repressão oferecida pelos proprietários e pela polícia. A guerra foi deflagrada. “Reforma agrária na lei ou na marra” passou a ser o mote da ação das Ligas, que orquestraram greves, comícios, ocupações de terras e pregações abertamente contra o latifúndio, a exploração dos trabalhadores rurais e, claro, contra o imperialismo norte-americano. Mas era notório que entre os articuladores e líderes das Ligas havia comunistas “fichados” e também figuras demagógicas dispostas a promover suas “agitações” políticas que serviam até para desestabilizar o movimento, afinal, coesão política não era uma característica fundamental das Ligas Camponesas. A possibilidade de sindicalização dos trabalhadores rurais somente passou a ser viável com o decreto do Estatuto dos Trabalhadores Rurais (ETR) realizado pelo Governo Jango em março de 1963 e a luta pelo controle das entidades sindicais dividiu o movimento camponês, fracionado pela disputa entre Ligas, grupos ligados a setores da Igreja Católica, o PCB, grupos políticos radicais independentes e até por grupos beneficiados pela distribuição de verbas empregadas exatamente para aplacar qualquer indício de “ação revolucionária” no campo.
Protesto de camponeses em Pernambuco, 1960
O ETR possibilitou ainda que direitos trabalhistas que já eram assegurados aos trabalhadores urbanos chegassem, finalmente, a contemplar os trabalhadores rurais. Sendo assim, 13º salário, férias, carteira assinada e salário-mínimo passaram a ser pontos de reivindicação constante do movimento camponês. Os proprietários, habituados a ignorar qualquer possibilidade de amparo ou benefício trabalhista aos camponeses, não se mostraram satisfeitos com tais medidas. Na Zona da Mata nordestina ainda era comum a prática do cambão (espécie de obrigação feudal, caracterizada pelo trabalho forçado nas terras do senhor, sem a devida contrapartida, durante determinado período de tempo), do pagamento de metade da produção pelos pequenos proprietários e posseiros aos seus suseranos modernos e também a submissão por dívidas de empréstimos abusivos, além do infalível barracão que mantinha o trabalhador preso a impagáveis débitos. A miséria que recaía sobre os trabalhadores rurais, portanto, estava estreitamente ligada ao grau de exploração e degradação ao qual estavam submetidos e a ação do movimento camponês tentava exatamente fazer com que esta realidade pudesse ser percebida, corroborando-se assim o que havia alertado o jornalista norte-americano ao afirmar que “a deflagração de uma revolução de grandes dimensões poderá se tornar inevitável dentro de poucos anos”.
Fazer reforma agrária, contudo, implicaria em confronto com vigorosos interesses contrários e na necessidade imperiosa de promover uma reforma constitucional. O artigo 141 da Constituição Federal de 1946, em seu 16º parágrafo, determinava que uma “indenização prévia, justa e em dinheiro” deveria ser paga ao proprietário das terra desapropriada para fins de reforma agrária. Dentre as medidas apontadas pela Declaração do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o Caráter da Reforma Agrária, realizado em Belo Horizonte em novembro 1961, estava exatamente a proposta de modificação deste dispositivo constitucional, apontando que a indenização pronta haveria de ser substituída pelo pagamento das terras desapropriadas através de títulos públicos de longo prazo a juros baixos. Esta, dentre outras propostas que visavam disponibilizar terras para a promoção da reforma agrária, foram rechaçadas pelos grupos anti-progressistas e pela oposição ao Governo João Goulart. Se a campanha pela reforma agrária já era intensa entre os trabalhadores rurais e progressistas, a campanha anti-reformista também estava em atividade. Panfletos de grupos ligados aos proprietários disseminavam-se amplamente a exemplo de um determinado panfleto chamado Fronteira Democrática que circulou em 1963 e que conclamava a sociedade a pressionar os congressistas para que estes não cedessem aos apelos que tentavam promover a reforma constitucional que viabilizaria a reforma agrária no Brasil. Afirmando que esta oposição às reformas era “uma reivindicação de toda nação” e que a democracia estava em risco graças aos avanços dos reformistas, a Fronteira Democrática tentava convocar a opinião pública para que esta não permitisse que “pequeninas divergências sirvam de escada aos propósitos subversivos”. Diferente da Fronteira Democrática, que era anônima, o grupo dos autores responsáveis pelo livro e pelo panfleto Reforma Agrária – Questão de Consciência possuía os seus quadros políticos bem identificados (entre eles o Arcebispo de Diamantina e o Bispo de Campos) e invocavam a “consciência cristã dos brasileiros” contra as intenções de João Goulart de por em prática o desenvolvimento da reforma agrária e contra sua determinação de afetar uma Constituição em que “contêm os princípios básicos da doutrina e civilização cristãs que a nenhum poder humano é lícito revogar”. Os dispositivos constitucionais que mantinham intocadas as estruturas agrárias brasileiras eram, portanto, encarados como dispositivos divinos, que emanavam o máximo grau de civilidade cristã – de um cristianismo defendido por quem achava justa a miséria dos trabalhadores rurais, pelo menos.
O processo “revolucionário” nordestino, principalmente em Pernambuco, teve inúmeros líderes, personagens decisivos para a fomentação de um clima que preocupou senhores de terras, afortunados de direita, setores de uma classe média conservadora e temerosa de que uma suposta revolução colocasse o país de pernas para o ar e, evidentemente, incomodou militares que não poderiam se acomodar diante tamanha sublevação da “ordem”, quando “agitadores” pregavam idéias perigosas e dissolventes. Dois destes tantos agitadores, certamente os mais perigosos, foram Francisco Julião e Miguel Arraes.
Francisco Julião foi um advogado que fez história em atuação no movimento camponês. Prestou suporte gratuito a trabalhadores rurais em causas judiciais contra seus patrões e foi fazendo fama como grande defensor dos homens do campo. Elegeu-se deputado estadual e federal, pelo Partido Socialista Brasileiro, com os votos dos trabalhadores rurais e era reconhecido como o grande líder das Ligas Camponesas. Pregava como plataforma a ampliação do movimento, ressaltando que o exemplo de Cuba estaria sendo revivido e reinventado no Nordeste. Dizia ele, “os grandes latifundiários apoiados pelo imperialismo dos EUA estão sugando nosso sangue”. Eram freqüentes as suas idas à Cuba e através de sua influência e trânsito político na ilha governada por Fidel Castro muitas outras lideranças camponesas viajaram ao país para conhecer de perto uma experiência revolucionária. Pouco freqüentava o Congresso, mas estava em Brasília no dia 31 de março de 1964. Naquele dia discursou a respeito das inquietações que tomavam conta do país e do estado de alienação e descompromisso do Congresso diante das grandes questões que afligiam o povo. Advertiu que a questão agrária era o “fator de toda essa inquietação” e que a libertação das massas trabalhadoras seria “conquistada pacificamente ou por meio da revolução, da rebelião das massas inconformadas do Brasil”. Horas depois Julião estava em fuga. O Golpe Militar o transformou em presa das mais valiosas.
Miguel Arraes elegeu-se governador de Pernambuco contrariando fortes interesses. Venceu o seu adversário direto, o senhor de engenho João Cleofas, derrotou ainda os altos investimentos do IBAD e a campanha difamatória feita pela imprensa. Advogado, ex-deputado estadual, ex-secretário estadual da fazenda e ex-prefeito do Recife, Arraes foi impondo um estilo que se mostrou altamente perigoso. O método do professor Paulo Freire, secretário estadual da Educação, alfabetizava a população pobre em tempo reduzido enquanto trazia para o convívio destes novos letrados temas relativos ao universo cotidiano de exploração e submissão ao qual estavam ligados. O “Acordo do Campo”, assinado por proprietários, fornecedores e entidades representativas dos trabalhadores rurais (incluindo as Ligas Camponesas) foi conduzido pelo governo como tentativa de estabelecer entendimentos que redundassem na diminuição dos conflitos no campo, contudo, a insistência dos proprietários em descumprir dispositivos do ETR e a radicalização do movimento camponês pela reforma agrária não efetivaram os efeitos planejados ao acordo. A estratégia de ação do Governo Arraes preconizava o emprego dos dispositivos legais imparcialmente, sem dispor, deste modo, a capacidade coercitiva do poder governamental em serviço da classe dominante, o que implicou certamente numa iniciativa que por si já era “revolucionária”, considerando a forma como eram anteriormente conduzidos os conflitos entre senhores e trabalhadores rurais. Arraes e seu Governo de “comunistas” caíram com a deflagração do Golpe e o ex-governador foi preso e posteriormente exilado do país.
Com o decorrer dos Anos de Chumbo, os movimentos sociais foram reprimidos. Seus líderes foram presos, torturados, expulsos, assassinados. Sindicatos foram invadidos e as intervenções trataram de debelar os focos de resistência. As Ligas Camponesas foram eliminadas e, como poderia ser inferido com frustração, terminava do mesmo modo que as anteriores mais uma etapa da luta de classes no Brasil.
O combate a todo o estado de insubordinação e subversão que se atribuía ao legado dos governos destituídos não implicou no combate aos elementos que causavam as agitações, isto é, persistiram a miséria e a precarização nas relações de produção e trabalho e continuava a imperar o latifúndio. A este respeito observou Joseph Page, um observador norte-americano que esteve no Brasil para acompanhar o “processo revolucionário”, que “desde que o seu controle sobre o país era absoluto, não havia nada que impedisse os generais de decretarem as reformas básicas. Era esta a sua oportunidade, mas eles se esquivaram dela”.
O testemunho fundador de Pero Vaz de Caminha já havia dado conta de que a terra brasileira, “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo”. Os trabalhadores rurais na década de 1960 acreditavam que poderiam colher uma revolução através de suas lutas, mas as pragas que assolam o campo e atormentam as plantações são insistentes.
SÍNDROME DE HAVANA
Os ultra-conservadores brasileiros sempre temeram os comunistas, mas, por ocasião da quartelada de 31 de março, os bolcheviques russos já não povoavam os pesadelos exasperadores da direita tupiniquim. O mal estava perigosamente mais próximo de nós. O comunismo tropical de Cuba e a mística sedutora de seus barbudos revolucionários passaram a preocupar uma elite que percebeu que se um Fulgêncio Batista, apoiado pelas altas castas da sociedade cubana, pelo exército e pelas bênçãos dos EUA, podia simplesmente ser derrubado por um motim, então nada poderia lhes sugerir que o Brasil estaria livre deste tipo de incidente.
Fidel Castro e seus homens empreenderam dessas ações típicas de contos de heroísmo. Cerca de vinte guerrilheiros relativamente mal armados e escondidos na Sierra Maestra começaram a por em marcha um processo de tomada de poder impensável, que ganhou a simpatia dos camponeses pobres que iam aderindo ao movimento de insurreição. Entre 1956 e 1958 o movimento se espalhou e chegou à Havana até que, finalmente, no primeiro dia de 1959 conseguiu derrubar o ditador Batista. As condições da vitória de Fidel e de seus aliados, como o ícone pop-revolucionário Che Guevara, foram surpreendentes e Cuba caiu nos braços do socialismo para o descontentamento soberbo dos EUA.
A Revolucão Cubana é um movimento popular que consistiu na derrubada do governo de Fulgencio Batista pelo movimento de 26 de Julho e o estabelecimento de um novo governo, liderado por Fidel Castro, no início de 1959.
A nacionalização de empreendimentos e companhias norte-americanas instaladas na ilha e a reforma agrária que tomou as terras dos latifundiários cubanos foram dois gestos que ajudaram a difundir o temor sobre os guerrilheiros que se apossaram do poder, contudo, a aliança à União Soviética selou a posição de Cuba no cenário internacional como um dos pontos nevrálgicos da Guerra Fria. Em 1961 os homens de Washington, resolvidos a impor um fim ao atrevimento socialista na América, recorreram ao apoio de “exilados” cubanos treinados pela CIA, que teriam como missão derrubar Fidel e recompor a ordem em Cuba. As marionetes foram derrotadas na Playa Girón e os soviéticos decidiram garantir o regime cubano ao instalar no país lançadores de mísseis apontados diretamente para os EUA. John Kennedy, que para o historiador Eric Hobsbawm foi o presidente mais superestimado da História norte-americana, depois de amargar o fracasso da iniciativa desastrosa da invasão à Cuba e escapar ileso da Crise dos Mísseis, resolveu impor um bloqueio econômico contra a ilha.
No Brasil, país onde Che Guevara foi condecorado pelo próprio presidente Jânio Quadros, o alarde de que os comunistas poderiam seguir o exemplo cubano era algo incômodo. Durante o Governo de João Goulart, a posição oficial era a da defesa à garantia de autodeterminação cubana, isto é, contra qualquer iniciativa militarmente ofensiva e mesmo anti a proposta de bloqueio ao país de Fidel Castro. Durante a Conferência de Punta del Este, em janeiro de 1962, o Brasil foi firme opositor à proposta, vinda pronta de Washington, que definia sansões a Cuba (incluindo ameaças de invasão sob o beneplácito da OEA), mas, apesar dos confrontos políticos, o Brasil se absteve das votações pela expulsão de Cuba e estabelecimento do bloqueio. Vitória dos EUA.
Che Guevara e Fidel Castro
Mesmo não admitindo o bloqueio – e muito menos o ataque militar – contra Cuba, o governo brasileiro enviou o general Albino Silva, então Chefe da Casa Militar da Presidência, para Havana com o objetivo de esclarecer a Fidel Castro que, ainda que o Governo se opusesse aos desmandos norte-americanos, não apoiaria a instalação da base de lançamento de mísseis. O Brasil acabou assumindo um comportamento ambíguo, pois condenava o bloqueio e se abstinha da votação, enviava porta-voz à Cuba e não tomava partido claro e definitivo contra os EUA em relação aos mísseis. O estilo vacilante do Governo Jango manifestou-se também na condução de sua política internacional e num momento particularmente conturbado. A Crise dos Mísseis foi contornada, na verdade, por entendimentos entre os seus principais responsáveis, Kennedy e Krushov, e, no saldo final, Goulart conseguiu sair-se muito mal, desgastado entre a direita e a esquerda.
A desconfiança em relação ao governo brasileiro tomou novo fôlego nos corredores da Casa Branca, do Pentágono, da Secretaria de Estado norte-americana e também na sede da CIA. Nesta mesma ocasião, a imprensa estadunidense apontou sua “insuspeita” curiosidade sobre nós. O New York Times noticiava o estado de crise da economia brasileira, afugentando investidores e levando “autoridades” ianques a proferir severas críticas e acusações a respeito da condução administrativa do país. O próprio Kennedy declarou: “não há nada que os EUA possam fazer para beneficiar o povo brasileiro, enquanto a situação monetária e fiscal for tão instável”.
Kennedy já temia que o caos brasileiro servisse de trampolim para que se processasse uma tomada de poder por grupos esquerdistas. Temia que mais uma revolução na América significasse que os EUA estavam deixando a situação sair de seu controle. Nos EUA, o temor estava se difundindo nas principais esferas do poder e o Brasil estava sendo vigiado por espiões espalhados em consulados, em agências supostamente independentes e em multinacionais. O próprio embaixador Lincoln Gordon era uma espécie de espião-mor, ardiloso e articulado.
O alarde promovido pelas reportagens de Tad Szulc, do New York Times, feitas no Nordeste, traziam expressões atribuídas a autoridades brasileiras, que diziam que “o Nordeste se tornará comunista e teremos uma situação dez vezes pior do que Cuba, se algo não for feito”. Esta mesma fonte não revelada sentenciou que “se o Nordeste se perder para vocês, americanos, a revolução cubana será um piquenique em comparação”.
A deflagração do Golpe foi um alívio para todos aqueles que tremiam de medo da Síndrome de Havana. O Brasil estaria resguardado da moléstia comunista com o regime imposto pelos militares, pela direita e pela cooperação incansável do bom e velho Tio Sam.
A Síndrome de Havana se espalhou mais entre aqueles que a temiam do que, propriamente, entre os supostos revolucionários. Uma história que faz parte do anedotário político pernambucano relativo à ação da Ligas Camponesas e de suas imaginárias relações com o Governo Fidel Castro serve como interessante fato para encerrar esta série que já chega ao seu terceiro artigo.
O temível coronel Ibiapina, que chefiava o Serviço Secreto de Informação do Exército, interrogou um agitador subversivo chamado José Eduardo, que liderava o sindicato rural de Palmares. O agitador perigoso esteve em Cuba, fato que agravou seu grau de suspeição. Márcio Moreira Alves “transcreveu” o interrogatório entre o coronel e o agitador no livro “O Cristo do Povo”:
- “Por que você foi a Cuba”, perguntou o coronel.
- “Bem, seu coronel, fui porque o doutor Julião me convidou”.
- “E por que você aceitou o convite do deputado Francisco Julião?”
- “Por duas razões principais: primeiro porque nós somos muito pobres, vivíamos em questão com os donos da terra e o doutor Julião cuidava de nossos assuntos de graça. Eu achei que se recusasse um convite dele, ele poderia achar que nós estávamos desfeiteando e não iria mais querer resolver os nossos problemas de graça. Depois, cadê dinheiro para pagar advogado? Mais ainda fui por outra razão. Cada vez que eu estava no cabo da enxada e via passar um avião lá por cima, bonito, voando zum, zum, zum (e Zé Eduardo fazia o vôo com a mão, caprichando no zum-zum) me dava uma vontade danada de andar naquele bichão. Quando o doutor Julião me convidou achei que o dia chegara de eu também voar e não quis perder a oportunidade”.
- “E você gostou da viagem?”, indagou o coronal, meio sem jeito com aquela história de vontade de voar.
- “Bem, seu coronel, gostar, mesmo, não gostei não”.
- “Por quê?”
- “É que lá no alto, quando ele está zum, zum, zum, de repente dá uns trancos, desce nuns buracos. O estômago da gente fica embrulhado e dá um medo danado. Eu fiquei meio zonzo e com medo de melar do homem que estava do meu lado”.
- “Seu burro, não estou perguntando se gostou de andar de avião, quero saber é se gostou de Cuba”.
- “Ah, seu coronal, gostar, também não gostei não”.
- “Por quê?”
- “Não é que aquela gente lá parece toda estrangeira? Eles falam tudo arrevezado, a gente não entende o que eles dizem, eles não entendem o que a gente diz, é uma confusão danada”.
- “E o que você viu por lá?”
- “Não vi nada, não senhor. Só uns engenhos de cana, umas usinas, um povo parecido com a gente aqui de Pernambuco, só que estrangeiro”.
- “Já sei que é estrangeiro, seu ignorante. Mas você não viu mais nada, preparativos de guerra, por exemplo?”
- “Ah, isso de guerra não vi não senhor, coronel”.
- “Você não viu soldados pela rua, de uniforme e metralhadoras?”
- “Ah, bom, soldados e metralhadoras vi muito, sim senhor. Igualzinho a aqui em Pernambuco”.
- “E não viu canhões antiaéreos, sacos de areia pelas ruas?”
- “Sacos de areia, vi, sim senhor. Até furei um deles para ver o que tinha dentro. Era uma areia fininha, branquinha, boa para caiar casa. Eles devem estar querendo caiar muita casa lá em Cuba”.
- “Seu burro! Seu imbecil! Ponha-se daqui para fora! Você não é comunista, não. Você é cretino, isto sim! Saia da minha frente!”
Esta história pitoresca ilustra muito bem nossa experiência revolucionária e tipifica ainda melhor o quão brilhante era a percepção de nossa direita conspiradora, que subiu ao poder montada em tanques de guerra, usando suas fardas e medalhas brilhantes, pisando no povo com seus lustrosos coturnos. 40 anos se passaram desde a vitória das “forças ocultas” e esta efeméride quase passa despercebida, como se o esquecimento notável de um país sem memória nos guardasse mais esta lacuna.
fonte; por: Paulo Alexandre Filho
Texto originalmente publicado no site Duplipensar em 2004 por ocasião do 40º aniversário do Golpe Militar
O então Vice-Presidente João Goulart deveria legalmente assumir as chefias de Governo e Estado como legítimo Presidente da República, mas seu governo já teve um início incomum, pois, na tentativa de limitar as prerrogativas presidenciais, o Congresso Nacional realizou uma das grandes proezas históricas da irracionalidade política brasileira: desprezando que o país possuía uma Constituição e que os Poderes a ela deveriam seguir, foi imposto um regime parlamentarista improvisado que foi, pelo bem da legalidade, posteriormente derrubado pelo plebiscito de 6 de janeiro de 1963. Goulart, herdeiro político de Getúlio Vargas, buscou imprimir uma série de medidas que desagradaram as vontades dos setores conservadores e reacionários, cujos interesses geralmente nortearam as políticas governamentais. Além de impor o monopólio estatal para importação de petróleo e regulamentar o fluxo de remessa de lucros ao exterior por parte das multinacionais, Goulart buscou manter uma política internacional mais autônoma, o que poderia alarmar aqueles que tinham receios a respeito de suas supostas relações com o comunismo numa época na qual imperava o domínio da Guerra Fria sobre o alinhamento das “nações periféricas” entre os dois pólos antagonistas – EUA e URSS.
O país se agitou durante o Governo Jango. O processo de democratização acentuou a politização dos atos públicos que se espalharam pelas ruas das principais cidades brasileiras. Verificou-se o fortalecimento dos organismos de representação dos movimentos trabalhistas por meio da atuação de entidades como o Movimento Unificado dos Trabalhadores (MUT), o Pacto de Unidade e Ação (PUA), o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e das centrais que congregavam os trabalhadores rurais, cuja sindicalização somente foi regulamentada em junho de 1963. O movimento dos estudantes esteve igualmente ativo e solidário a qualquer causa que, mesmo romanticamente, tentasse servir como via de libertação para o Brasil – eram tempos em que a IV Internacional e seu viés trotskista seduziu jovens em nome da aventura revolucionária. Os temíveis comunistas voltaram a atormentar seus perseguidores e Cuba tornou-se uma espécie de “Paraíso na Terra”, um lugar onde se podia viver em liberdade do tenebroso capitalismo e experimentar a grandeza do socialismo.
Como agitação popular sempre foi encarada como sinônimo de perigo e subversão, então, os vigilantes senhores zelosos pela integridade de suas posições ameaçadas por este clima de mobilização que se instalou como uma praga no país, resolveram que alguma resistência ou coisa pior precisava ser executada com certa urgência. A tentativa de implodir a ascensão dos subversivos contou com apoio financeiro norte-americano através da Aliança para o Progresso e com o suporte o de endinheirados colaboradores nacionais que, através do Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD, distribuíram bastante capital para a cooptação de bases no movimento social e financiamento de campanhas políticas. Os conservadores passaram a articular também os seus próprios movimentos de massa com os apoios de grupos como a hedionda Sociedade em Defesa da Tradição, Família e Propriedade (a TFP) ou a grotesca Frente Patriótica Civil-Militar. O ápice deste ativismo de extrema-direita foi a realização da incrível “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.
Jango, o ícone-mor do colapso populista, buscou canalizar o furor dos movimentos sociais parar o seu lado, buscou encampar as suas Reformas de Base e nos seus últimos dias de governo participou do apoteótico comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, ocasião na qual fez questão de anunciar o lançamento de seu plano de reforma agrária: o Decreto de 13 de março de 1964, que declarava as terras que ladeavam as rodovias federais, ferrovias e terras que contaram com benefícios bancados pela União cumpririam sua função social, sendo então destinadas a uma distribuição entre os trabalhadores sem terras. Os progressistas, os “agitadores” e os sonhadores confiavam na idéia de que aquele clima de efervescência política inspirava um estado favorável à concretização de seus intentos. O eufórico Luiz Carlos Prestes chegou a afirmar, um mês antes do golpe, que os comunistas já estavam no poder. Nos instantes anteriores à queda de Jango, a CGT articulou uma greve geral no Brasil como forma de pressão contra os grupos que se opunham às reformas. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) declarou, em nota do 31 de março de 1964, dia em que os conspiradores e golpistas acertavam o assalto ao Poder, que os trabalhadores não podiam permitir que as reformas propostas por Jango fossem perturbadas por forças reacionárias.
Mas já não havia mais reformas a defender, pois já não havia mais Governo Jango. O “Hamlet dos Pampas” foi derrubado pelos conspiradores sem maiores alardes. Os golpistas devem ter cansado do espetáculo de radicalização ideológica, da farra dos agitadores e do otimismo dos comunistas. O sonho acabou.
Dizem que há três maneiras de lidar com os problemas: a maneira certa, a maneira errada e a maneira dos militares. A maneira militar de lidar com problemas políticos costuma ser isenta de parâmetros racionais ou valores democráticos. O negócio é simples: guerra é guerra, inimigo é inimigo e identificado o inimigo, proceda-se o ataque. Os bravos militares acorreram aos apelos patrióticos dos conspiradores civis (sendo muitos deles homens de execráveis comportamentos políticos, como Magalhães Pinto, Carlos Lacerda ou Adhemar de Barros, governadores dos três mais influentes Estados brasileiros – Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente). O Exército, como já havia notado Antonio Callado, era o efetivo e verdadeiro partido político brasileiro. Se os generais, que não são eleitos pelo povo, decidem não admitir um governo, seja ele de quem for, eles simplesmente decidem dar-lhe um fim. Já não haviam acolhido com boa vontade a posse de Jango, mas resolveram pagar para ver. A paciência bélica da caserna se esgotou e próprios militares decidiram tomar o controle do governo. Enjoaram dos civis.
Há quem esteja plenamente convicto de que no período imediatamente anterior ao Golpe Militar o Brasil viveu uma experiência ardentemente progressiva, um surto de inspiração revolucionária plenamente estabelecido. Mas esta convicção talvez não resista ao confronto com os fatos. Ocorre que radicalização dos movimentos sociais organizados, ao contrário de beneficiar o Governo Jango, acabou o desestabilizando e poucos de seus aliados possuíam uma apurada percepção de que o governo trilhava por um campo minado – não haviam captado os sinais oferecidos pelas tramas políticas que estiveram ligadas ao processo de imposição do parlamentarismo “anti-constitucional” como condição para a admissão de Jango como Presidente. A situação de Jango era insustentável e não havia um suporte firme o bastante para impor uma resistência ao golpe. O Governo Jango desmantelou-se como um castelo de cartas. As resistências ao funcionamento das Reformas de Base não seriam impostas apenas no plano retórico da discordância por declaração e a prova cabal da inconsistência de solidez dos progressistas foi a forma fácil como deixaram o poder, sem qualquer resistência ou apoio.
O dia em que o Brasil acordou com o anúncio de que o governo havia sido deposto por uma quartelada foi o nosso grande e inesquecível dia como uma legítima “República de Bananas”, identificação típica jocosamente atribuída à lastimável tradição latino-americana de apelo a golpes de Estado, prática que entre nós já foi bastante vulgarizada.
SEMEANDO A REVOLUÇÃO
Deu no New York Times, mais importante jornal dos EUA: “Os componentes de uma situação de revolução tornam-se cada vez mais visíveis na vastidão de um Nordeste brasileiro assolado pela pobreza e perseguido pela praga da seca”. Era final de outubro de 1960 quando o correspondente norte-americano Tad Szulc percorreu Pernambuco tomando notas da situação, entrevistando pessoas e colhendo dados a respeito de uma presumível “revolução” que pudesse estar em marcha no Nordeste. Sua investigação resultou em reportagens que foram publicadas no mais conhecido e influente jornal dos EUA e a repercussão destas matérias deixaram Washington em alerta – o governo estadunidense não queria ver uma nova revolução na América Latina, temia que uma nova e gigantesca Cuba acabasse por desmoralizar sua influência no continente.
As Ligas Camponesas que, segundo a matéria, eram “infiltradas por comunistas”, espalharam o temor de que uma mudança drástica nas relações de trabalho no campo viesse a ocorrer e que a perigosa e indesejável reforma agrária viesse a ser uma conquista inevitável. Pânico entre os proprietários de terras. Desespero entre os políticos conservadores, reacionários e prepostos do regime da grande propriedade rural. Enfim, o alarde era perfeitamente justificável.
Originalmente surgidas com a organização dos camponeses na Europa durante a Idade Média. No Brasil, as ligas camponesas são conhecidas como a associação de trabalhadores rurais que se iniciou no Engenho Galiléia, no Estado de Pernambuco, em 1955, a partir da reivindicação de caixões para os camponeses mortos. O temor dos grandes proprietários acabou por hostilizar o movimento que, junto ao advogado e político Francisco Julião, tornou-se um movimento de amplitude nacional pelos direitos à terra, em defesa da Reforma Agrária.
As mobilizações no campo efetivamente se avolumaram desde a crescente ação das Ligas Camponesas a partir da desapropriação do Engenho Galiléia, no município pernambucano de Vitória de Santo Antão em 1955. Daí em diante, os conflitos entre os trabalhadores rurais e os grandes proprietários recrudesceram e o estado de violência passou a imperar como rotina ainda mais evidente no meio rural nordestino (o movimento irradiou e as Ligas chegaram a atuar por praticamente toda a região). A radicalização reivindicatória e política do movimento camponês passou a enfrentar uma radicalização acentuada também da repressão oferecida pelos proprietários e pela polícia. A guerra foi deflagrada. “Reforma agrária na lei ou na marra” passou a ser o mote da ação das Ligas, que orquestraram greves, comícios, ocupações de terras e pregações abertamente contra o latifúndio, a exploração dos trabalhadores rurais e, claro, contra o imperialismo norte-americano. Mas era notório que entre os articuladores e líderes das Ligas havia comunistas “fichados” e também figuras demagógicas dispostas a promover suas “agitações” políticas que serviam até para desestabilizar o movimento, afinal, coesão política não era uma característica fundamental das Ligas Camponesas. A possibilidade de sindicalização dos trabalhadores rurais somente passou a ser viável com o decreto do Estatuto dos Trabalhadores Rurais (ETR) realizado pelo Governo Jango em março de 1963 e a luta pelo controle das entidades sindicais dividiu o movimento camponês, fracionado pela disputa entre Ligas, grupos ligados a setores da Igreja Católica, o PCB, grupos políticos radicais independentes e até por grupos beneficiados pela distribuição de verbas empregadas exatamente para aplacar qualquer indício de “ação revolucionária” no campo.
Protesto de camponeses em Pernambuco, 1960
O ETR possibilitou ainda que direitos trabalhistas que já eram assegurados aos trabalhadores urbanos chegassem, finalmente, a contemplar os trabalhadores rurais. Sendo assim, 13º salário, férias, carteira assinada e salário-mínimo passaram a ser pontos de reivindicação constante do movimento camponês. Os proprietários, habituados a ignorar qualquer possibilidade de amparo ou benefício trabalhista aos camponeses, não se mostraram satisfeitos com tais medidas. Na Zona da Mata nordestina ainda era comum a prática do cambão (espécie de obrigação feudal, caracterizada pelo trabalho forçado nas terras do senhor, sem a devida contrapartida, durante determinado período de tempo), do pagamento de metade da produção pelos pequenos proprietários e posseiros aos seus suseranos modernos e também a submissão por dívidas de empréstimos abusivos, além do infalível barracão que mantinha o trabalhador preso a impagáveis débitos. A miséria que recaía sobre os trabalhadores rurais, portanto, estava estreitamente ligada ao grau de exploração e degradação ao qual estavam submetidos e a ação do movimento camponês tentava exatamente fazer com que esta realidade pudesse ser percebida, corroborando-se assim o que havia alertado o jornalista norte-americano ao afirmar que “a deflagração de uma revolução de grandes dimensões poderá se tornar inevitável dentro de poucos anos”.
Fazer reforma agrária, contudo, implicaria em confronto com vigorosos interesses contrários e na necessidade imperiosa de promover uma reforma constitucional. O artigo 141 da Constituição Federal de 1946, em seu 16º parágrafo, determinava que uma “indenização prévia, justa e em dinheiro” deveria ser paga ao proprietário das terra desapropriada para fins de reforma agrária. Dentre as medidas apontadas pela Declaração do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o Caráter da Reforma Agrária, realizado em Belo Horizonte em novembro 1961, estava exatamente a proposta de modificação deste dispositivo constitucional, apontando que a indenização pronta haveria de ser substituída pelo pagamento das terras desapropriadas através de títulos públicos de longo prazo a juros baixos. Esta, dentre outras propostas que visavam disponibilizar terras para a promoção da reforma agrária, foram rechaçadas pelos grupos anti-progressistas e pela oposição ao Governo João Goulart. Se a campanha pela reforma agrária já era intensa entre os trabalhadores rurais e progressistas, a campanha anti-reformista também estava em atividade. Panfletos de grupos ligados aos proprietários disseminavam-se amplamente a exemplo de um determinado panfleto chamado Fronteira Democrática que circulou em 1963 e que conclamava a sociedade a pressionar os congressistas para que estes não cedessem aos apelos que tentavam promover a reforma constitucional que viabilizaria a reforma agrária no Brasil. Afirmando que esta oposição às reformas era “uma reivindicação de toda nação” e que a democracia estava em risco graças aos avanços dos reformistas, a Fronteira Democrática tentava convocar a opinião pública para que esta não permitisse que “pequeninas divergências sirvam de escada aos propósitos subversivos”. Diferente da Fronteira Democrática, que era anônima, o grupo dos autores responsáveis pelo livro e pelo panfleto Reforma Agrária – Questão de Consciência possuía os seus quadros políticos bem identificados (entre eles o Arcebispo de Diamantina e o Bispo de Campos) e invocavam a “consciência cristã dos brasileiros” contra as intenções de João Goulart de por em prática o desenvolvimento da reforma agrária e contra sua determinação de afetar uma Constituição em que “contêm os princípios básicos da doutrina e civilização cristãs que a nenhum poder humano é lícito revogar”. Os dispositivos constitucionais que mantinham intocadas as estruturas agrárias brasileiras eram, portanto, encarados como dispositivos divinos, que emanavam o máximo grau de civilidade cristã – de um cristianismo defendido por quem achava justa a miséria dos trabalhadores rurais, pelo menos.
O processo “revolucionário” nordestino, principalmente em Pernambuco, teve inúmeros líderes, personagens decisivos para a fomentação de um clima que preocupou senhores de terras, afortunados de direita, setores de uma classe média conservadora e temerosa de que uma suposta revolução colocasse o país de pernas para o ar e, evidentemente, incomodou militares que não poderiam se acomodar diante tamanha sublevação da “ordem”, quando “agitadores” pregavam idéias perigosas e dissolventes. Dois destes tantos agitadores, certamente os mais perigosos, foram Francisco Julião e Miguel Arraes.
Francisco Julião foi um advogado que fez história em atuação no movimento camponês. Prestou suporte gratuito a trabalhadores rurais em causas judiciais contra seus patrões e foi fazendo fama como grande defensor dos homens do campo. Elegeu-se deputado estadual e federal, pelo Partido Socialista Brasileiro, com os votos dos trabalhadores rurais e era reconhecido como o grande líder das Ligas Camponesas. Pregava como plataforma a ampliação do movimento, ressaltando que o exemplo de Cuba estaria sendo revivido e reinventado no Nordeste. Dizia ele, “os grandes latifundiários apoiados pelo imperialismo dos EUA estão sugando nosso sangue”. Eram freqüentes as suas idas à Cuba e através de sua influência e trânsito político na ilha governada por Fidel Castro muitas outras lideranças camponesas viajaram ao país para conhecer de perto uma experiência revolucionária. Pouco freqüentava o Congresso, mas estava em Brasília no dia 31 de março de 1964. Naquele dia discursou a respeito das inquietações que tomavam conta do país e do estado de alienação e descompromisso do Congresso diante das grandes questões que afligiam o povo. Advertiu que a questão agrária era o “fator de toda essa inquietação” e que a libertação das massas trabalhadoras seria “conquistada pacificamente ou por meio da revolução, da rebelião das massas inconformadas do Brasil”. Horas depois Julião estava em fuga. O Golpe Militar o transformou em presa das mais valiosas.
Miguel Arraes elegeu-se governador de Pernambuco contrariando fortes interesses. Venceu o seu adversário direto, o senhor de engenho João Cleofas, derrotou ainda os altos investimentos do IBAD e a campanha difamatória feita pela imprensa. Advogado, ex-deputado estadual, ex-secretário estadual da fazenda e ex-prefeito do Recife, Arraes foi impondo um estilo que se mostrou altamente perigoso. O método do professor Paulo Freire, secretário estadual da Educação, alfabetizava a população pobre em tempo reduzido enquanto trazia para o convívio destes novos letrados temas relativos ao universo cotidiano de exploração e submissão ao qual estavam ligados. O “Acordo do Campo”, assinado por proprietários, fornecedores e entidades representativas dos trabalhadores rurais (incluindo as Ligas Camponesas) foi conduzido pelo governo como tentativa de estabelecer entendimentos que redundassem na diminuição dos conflitos no campo, contudo, a insistência dos proprietários em descumprir dispositivos do ETR e a radicalização do movimento camponês pela reforma agrária não efetivaram os efeitos planejados ao acordo. A estratégia de ação do Governo Arraes preconizava o emprego dos dispositivos legais imparcialmente, sem dispor, deste modo, a capacidade coercitiva do poder governamental em serviço da classe dominante, o que implicou certamente numa iniciativa que por si já era “revolucionária”, considerando a forma como eram anteriormente conduzidos os conflitos entre senhores e trabalhadores rurais. Arraes e seu Governo de “comunistas” caíram com a deflagração do Golpe e o ex-governador foi preso e posteriormente exilado do país.
Com o decorrer dos Anos de Chumbo, os movimentos sociais foram reprimidos. Seus líderes foram presos, torturados, expulsos, assassinados. Sindicatos foram invadidos e as intervenções trataram de debelar os focos de resistência. As Ligas Camponesas foram eliminadas e, como poderia ser inferido com frustração, terminava do mesmo modo que as anteriores mais uma etapa da luta de classes no Brasil.
O combate a todo o estado de insubordinação e subversão que se atribuía ao legado dos governos destituídos não implicou no combate aos elementos que causavam as agitações, isto é, persistiram a miséria e a precarização nas relações de produção e trabalho e continuava a imperar o latifúndio. A este respeito observou Joseph Page, um observador norte-americano que esteve no Brasil para acompanhar o “processo revolucionário”, que “desde que o seu controle sobre o país era absoluto, não havia nada que impedisse os generais de decretarem as reformas básicas. Era esta a sua oportunidade, mas eles se esquivaram dela”.
O testemunho fundador de Pero Vaz de Caminha já havia dado conta de que a terra brasileira, “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo”. Os trabalhadores rurais na década de 1960 acreditavam que poderiam colher uma revolução através de suas lutas, mas as pragas que assolam o campo e atormentam as plantações são insistentes.
SÍNDROME DE HAVANA
Os ultra-conservadores brasileiros sempre temeram os comunistas, mas, por ocasião da quartelada de 31 de março, os bolcheviques russos já não povoavam os pesadelos exasperadores da direita tupiniquim. O mal estava perigosamente mais próximo de nós. O comunismo tropical de Cuba e a mística sedutora de seus barbudos revolucionários passaram a preocupar uma elite que percebeu que se um Fulgêncio Batista, apoiado pelas altas castas da sociedade cubana, pelo exército e pelas bênçãos dos EUA, podia simplesmente ser derrubado por um motim, então nada poderia lhes sugerir que o Brasil estaria livre deste tipo de incidente.
Fidel Castro e seus homens empreenderam dessas ações típicas de contos de heroísmo. Cerca de vinte guerrilheiros relativamente mal armados e escondidos na Sierra Maestra começaram a por em marcha um processo de tomada de poder impensável, que ganhou a simpatia dos camponeses pobres que iam aderindo ao movimento de insurreição. Entre 1956 e 1958 o movimento se espalhou e chegou à Havana até que, finalmente, no primeiro dia de 1959 conseguiu derrubar o ditador Batista. As condições da vitória de Fidel e de seus aliados, como o ícone pop-revolucionário Che Guevara, foram surpreendentes e Cuba caiu nos braços do socialismo para o descontentamento soberbo dos EUA.
A Revolucão Cubana é um movimento popular que consistiu na derrubada do governo de Fulgencio Batista pelo movimento de 26 de Julho e o estabelecimento de um novo governo, liderado por Fidel Castro, no início de 1959.
A nacionalização de empreendimentos e companhias norte-americanas instaladas na ilha e a reforma agrária que tomou as terras dos latifundiários cubanos foram dois gestos que ajudaram a difundir o temor sobre os guerrilheiros que se apossaram do poder, contudo, a aliança à União Soviética selou a posição de Cuba no cenário internacional como um dos pontos nevrálgicos da Guerra Fria. Em 1961 os homens de Washington, resolvidos a impor um fim ao atrevimento socialista na América, recorreram ao apoio de “exilados” cubanos treinados pela CIA, que teriam como missão derrubar Fidel e recompor a ordem em Cuba. As marionetes foram derrotadas na Playa Girón e os soviéticos decidiram garantir o regime cubano ao instalar no país lançadores de mísseis apontados diretamente para os EUA. John Kennedy, que para o historiador Eric Hobsbawm foi o presidente mais superestimado da História norte-americana, depois de amargar o fracasso da iniciativa desastrosa da invasão à Cuba e escapar ileso da Crise dos Mísseis, resolveu impor um bloqueio econômico contra a ilha.
No Brasil, país onde Che Guevara foi condecorado pelo próprio presidente Jânio Quadros, o alarde de que os comunistas poderiam seguir o exemplo cubano era algo incômodo. Durante o Governo de João Goulart, a posição oficial era a da defesa à garantia de autodeterminação cubana, isto é, contra qualquer iniciativa militarmente ofensiva e mesmo anti a proposta de bloqueio ao país de Fidel Castro. Durante a Conferência de Punta del Este, em janeiro de 1962, o Brasil foi firme opositor à proposta, vinda pronta de Washington, que definia sansões a Cuba (incluindo ameaças de invasão sob o beneplácito da OEA), mas, apesar dos confrontos políticos, o Brasil se absteve das votações pela expulsão de Cuba e estabelecimento do bloqueio. Vitória dos EUA.
Che Guevara e Fidel Castro
Mesmo não admitindo o bloqueio – e muito menos o ataque militar – contra Cuba, o governo brasileiro enviou o general Albino Silva, então Chefe da Casa Militar da Presidência, para Havana com o objetivo de esclarecer a Fidel Castro que, ainda que o Governo se opusesse aos desmandos norte-americanos, não apoiaria a instalação da base de lançamento de mísseis. O Brasil acabou assumindo um comportamento ambíguo, pois condenava o bloqueio e se abstinha da votação, enviava porta-voz à Cuba e não tomava partido claro e definitivo contra os EUA em relação aos mísseis. O estilo vacilante do Governo Jango manifestou-se também na condução de sua política internacional e num momento particularmente conturbado. A Crise dos Mísseis foi contornada, na verdade, por entendimentos entre os seus principais responsáveis, Kennedy e Krushov, e, no saldo final, Goulart conseguiu sair-se muito mal, desgastado entre a direita e a esquerda.
A desconfiança em relação ao governo brasileiro tomou novo fôlego nos corredores da Casa Branca, do Pentágono, da Secretaria de Estado norte-americana e também na sede da CIA. Nesta mesma ocasião, a imprensa estadunidense apontou sua “insuspeita” curiosidade sobre nós. O New York Times noticiava o estado de crise da economia brasileira, afugentando investidores e levando “autoridades” ianques a proferir severas críticas e acusações a respeito da condução administrativa do país. O próprio Kennedy declarou: “não há nada que os EUA possam fazer para beneficiar o povo brasileiro, enquanto a situação monetária e fiscal for tão instável”.
Kennedy já temia que o caos brasileiro servisse de trampolim para que se processasse uma tomada de poder por grupos esquerdistas. Temia que mais uma revolução na América significasse que os EUA estavam deixando a situação sair de seu controle. Nos EUA, o temor estava se difundindo nas principais esferas do poder e o Brasil estava sendo vigiado por espiões espalhados em consulados, em agências supostamente independentes e em multinacionais. O próprio embaixador Lincoln Gordon era uma espécie de espião-mor, ardiloso e articulado.
O alarde promovido pelas reportagens de Tad Szulc, do New York Times, feitas no Nordeste, traziam expressões atribuídas a autoridades brasileiras, que diziam que “o Nordeste se tornará comunista e teremos uma situação dez vezes pior do que Cuba, se algo não for feito”. Esta mesma fonte não revelada sentenciou que “se o Nordeste se perder para vocês, americanos, a revolução cubana será um piquenique em comparação”.
A deflagração do Golpe foi um alívio para todos aqueles que tremiam de medo da Síndrome de Havana. O Brasil estaria resguardado da moléstia comunista com o regime imposto pelos militares, pela direita e pela cooperação incansável do bom e velho Tio Sam.
A Síndrome de Havana se espalhou mais entre aqueles que a temiam do que, propriamente, entre os supostos revolucionários. Uma história que faz parte do anedotário político pernambucano relativo à ação da Ligas Camponesas e de suas imaginárias relações com o Governo Fidel Castro serve como interessante fato para encerrar esta série que já chega ao seu terceiro artigo.
O temível coronel Ibiapina, que chefiava o Serviço Secreto de Informação do Exército, interrogou um agitador subversivo chamado José Eduardo, que liderava o sindicato rural de Palmares. O agitador perigoso esteve em Cuba, fato que agravou seu grau de suspeição. Márcio Moreira Alves “transcreveu” o interrogatório entre o coronel e o agitador no livro “O Cristo do Povo”:
- “Por que você foi a Cuba”, perguntou o coronel.
- “Bem, seu coronel, fui porque o doutor Julião me convidou”.
- “E por que você aceitou o convite do deputado Francisco Julião?”
- “Por duas razões principais: primeiro porque nós somos muito pobres, vivíamos em questão com os donos da terra e o doutor Julião cuidava de nossos assuntos de graça. Eu achei que se recusasse um convite dele, ele poderia achar que nós estávamos desfeiteando e não iria mais querer resolver os nossos problemas de graça. Depois, cadê dinheiro para pagar advogado? Mais ainda fui por outra razão. Cada vez que eu estava no cabo da enxada e via passar um avião lá por cima, bonito, voando zum, zum, zum (e Zé Eduardo fazia o vôo com a mão, caprichando no zum-zum) me dava uma vontade danada de andar naquele bichão. Quando o doutor Julião me convidou achei que o dia chegara de eu também voar e não quis perder a oportunidade”.
- “E você gostou da viagem?”, indagou o coronal, meio sem jeito com aquela história de vontade de voar.
- “Bem, seu coronel, gostar, mesmo, não gostei não”.
- “Por quê?”
- “É que lá no alto, quando ele está zum, zum, zum, de repente dá uns trancos, desce nuns buracos. O estômago da gente fica embrulhado e dá um medo danado. Eu fiquei meio zonzo e com medo de melar do homem que estava do meu lado”.
- “Seu burro, não estou perguntando se gostou de andar de avião, quero saber é se gostou de Cuba”.
- “Ah, seu coronal, gostar, também não gostei não”.
- “Por quê?”
- “Não é que aquela gente lá parece toda estrangeira? Eles falam tudo arrevezado, a gente não entende o que eles dizem, eles não entendem o que a gente diz, é uma confusão danada”.
- “E o que você viu por lá?”
- “Não vi nada, não senhor. Só uns engenhos de cana, umas usinas, um povo parecido com a gente aqui de Pernambuco, só que estrangeiro”.
- “Já sei que é estrangeiro, seu ignorante. Mas você não viu mais nada, preparativos de guerra, por exemplo?”
- “Ah, isso de guerra não vi não senhor, coronel”.
- “Você não viu soldados pela rua, de uniforme e metralhadoras?”
- “Ah, bom, soldados e metralhadoras vi muito, sim senhor. Igualzinho a aqui em Pernambuco”.
- “E não viu canhões antiaéreos, sacos de areia pelas ruas?”
- “Sacos de areia, vi, sim senhor. Até furei um deles para ver o que tinha dentro. Era uma areia fininha, branquinha, boa para caiar casa. Eles devem estar querendo caiar muita casa lá em Cuba”.
- “Seu burro! Seu imbecil! Ponha-se daqui para fora! Você não é comunista, não. Você é cretino, isto sim! Saia da minha frente!”
Esta história pitoresca ilustra muito bem nossa experiência revolucionária e tipifica ainda melhor o quão brilhante era a percepção de nossa direita conspiradora, que subiu ao poder montada em tanques de guerra, usando suas fardas e medalhas brilhantes, pisando no povo com seus lustrosos coturnos. 40 anos se passaram desde a vitória das “forças ocultas” e esta efeméride quase passa despercebida, como se o esquecimento notável de um país sem memória nos guardasse mais esta lacuna.
fonte; por: Paulo Alexandre Filho
Texto originalmente publicado no site Duplipensar em 2004 por ocasião do 40º aniversário do Golpe Militar
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